Não me considero religioso, mas hoje – e à falta de melhor – nem me importaria de ter um pretexto para escrever sobre Adão e Eva. Desafortunadamente, trago-vos Adão e Silva, acrescido do seu comité ministerial – sem ministério – para coordenar (e receber honorários) até 2026, com o propósito de delinear umas comemorações que se realizarão num único dia, algures em Abril de 2024. O leitor mais cético deve julgar que foi lapso de cálculo meu, mas não: Pedro Adão e Silva – e mais uns quantos largos – receberá até 2026 para coordenar uma data que finda em 2024.

Confuso? Não fique. Passo a detalhar: Adão e Silva, ex-dirigente do Partido Socialista, foi nomeado pelo próprio Partido Socialista para coordenar uma Comissão Executiva que ficará responsável por delinear o programa oficial das comemorações dos 50 anos da Revolução dos Cravos.

Posto isto, o próprio não seguirá sozinho nesta luta titânica de organizar uma festança de um dia. Convenhamos que ser apanhado de surpresa por esta nomeação e contar, apenas, com três anos para delinear eventos que decorrerão num único dia – e mais dois anos a receber para arrumar os pratos e as cadeiras – seria tarefa hercúlea para uma só pessoa. Posto isto, concederam a Adão e Silva a oportunidade de nomear: 1) um motorista, dada a azáfama que terá a organizar as comemorações que decorrerão daqui a cerca de 150 semanas (dado o timing apertado, é bom que jamais se atrase e cada minuto seja rentabilizado); 2) um secretário pessoal; 3) três técnicos especialistas; 4) três adjuntos; 5) quatro técnicos superiores em regime de mobilidade (não fazendo a mais pálida ideia entre o que distingue um técnico superior de um técnico especialista, mas sabendo que os técnicos especialistas não são superiores e que os superiores não são especialistas); 6) uma equipa de apoio técnico (além dos técnicos especialistas e superiores); 7) uma equipa de apoio administrativo (além de todas as restantes equipas). Poderia finalizar este parágrafo com alguma graça, mas estou em crer que o detalhe anterior já configura a plena graça em si.

Após analisar, criteriosamente, o detalhe de trabalhos que se prevê, temo que um período de cinco anos se revele escasso para preparar um plano de festas que durará um dia. Por uma questão de coerência, dava-se já o aval para que este tacho (de aço inoxidável) figure por, pelo menos, 53 anos – para que se prepare com a devida calma e ponderação (nunca é demais) os festejos do centésimo aniversário do 25 de Abril. Essa, sim, data vital para relembrar a nossa (ilusória) democracia. Se Pedro Adão e Silva já não estiver vivo a essa data, que se transfira o cargo, sem qualquer escrutínio, para outro ex-dirigente socialista, para que pelo menos se mantenha a tradição que só colhe numa sociedade tamanhamente resignada como a nossa.

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Indignado pela indignação daqueles que ainda têm algum bom senso de se encontrarem indignados, Pedro Adão e Silva grafou no Twitter: «É bem mais vasta do que antecipava a coligação de quem pensa que celebrar os 50 anos da nossa democracia não merece nem ambição programática, nem dignidade institucional». Não, Dr. Pedro, lamentamos imenso a sua incompreensão, logo vinda de um homem que considera compreender tantos assuntos: nenhum dos críticos da situação tem algo contra a democracia. É precisamente por apreciá-la que os defensores desta ideologia não costumam gostar de ser levados por lorpas. O Dr. Pedro é que não está a ver a “coisa” pelo prisma certo (ou que lhe agrada). Senão, repare: algo que gosto bastante são rissóis de camarão, uma iguaria nacional que também deveria ser homenageada de forma veemente. Veja lá que até acredito que exista consenso na comunidade científica sobre os maiores benefícios para o bem-estar psicológico oriundos do consumo de bons rissóis de camarão face à convivência com o estilo de democracia venezuelano-portuguesa que nos rege. Mas, seguindo o raciocínio, Dr. Pedro: também acredita que alguém deveria receber durante cinco anos cerca de 4.500 euros mensais para criar um plano programático (de um único dia) sobre a história dos rissóis de camarão?

Face a todo este tema idílico, o mais irónico chega a ser o quão paradoxal tudo isto se revela: na celebração de meio centenário de uma data que nos dita – mais do que qualquer outra – a igualdade de direitos, chega-nos esta atrocidade para a celebrar: a prova cabal que Portugal prossegue num sistema de castas, cuja democracia é opaca e a meritocracia ilusória. Há um nepotismo crónico neste governo; nepotismo, esse, que envergonharia qualquer país liderado com hombridade e que se apelide de verdadeiramente democrático.

Gostaria de deixar claro que nada nesta crónica tem algo de pessoal contra Pedro Adão e Silva. Tem, apenas, contra a utilização indevida dos impostos dos contribuintes para estabelecer um valor bizarro, se atendermos a todo o período a que várias pessoas serão remuneradas e comparando, em específico, esse período à necessidade do desafio em causa.

Adicionalmente, vejamos que Adão e Silva teve tanto contacto direto com o 25 de Abril quanto os universitários de hoje tiveram com a Guerra Colonial – ou eu com as trincheiras da Primeira Guerra. Ora, entre tantos indivíduos brilhantes, com vasta experiência de vida em múltiplas áreas do conhecimento e que, felizmente, ainda contamos com eles, vivos e lúcidos para relatar a (real) História e coordená-la na primeira pessoa, preferimos um senhor que comenta, simultaneamente, no Expresso, no Record, na TSF, na SportTV e na RTP. Não sei se sou o único que padeço de um significativo ceticismo face ao real valor intelectual de indivíduos que se propõem a analisar tão afincada e profissionalmente uma tática 4-3-3 com falso 9 quanto o estado socioeconómico de um país.

Atendendo à sua reconhecida paixão pelo surf – que inclusive já o levou a publicar um livro sobre o mesmo -, diria que Pedro Adão e Silva (comentador político, de futebol e de desportos aquáticos) está sempre disposto a apanhar a onda que melhor lhe convém. Só não levem a mal o facto de, teimosamente, não me apetecer contribuir com mais impostos para fantochadas à beira-mar.