A invasão da Ucrânia bem como o processo que a antecedeu, muito semelhante ao que, no final dos anos 30 antecedeu a 2ª Guerra Mundial, demonstra bem como a História frequentemente se repete e que não devemos ignorar as suas lições.

Logo em 2014 a anexação da Crimeia e a invasão do Leste da Ucrânia pela Rússia (embora disfarçada como acção de rebeldes russófonos), corresponderam quase exactamente à anexação da Áustria (Anschluss) e a invasão da região dos Sudetas na Checoslováquia (fronteiriça com a Alemanha e com uma significativa população de origem germânica) pela Alemanha nazi em 1938.

Desde aí as semelhanças têm vindo a acentuar-se com o discurso cada vez mais agressivo do Kremlin em relação aos países limítrofes, muito semelhante à teoria do “Espaço Vital” (Lebensraum) nazi, culminando com o revisionismo histórico (com um pouco de verdade, mas muito manipulado), que defende que russos e ucranianos são o mesmo povo, quase igual à tese pan-germanista relativa aos povos alemão e austríaco, que “justificou” a anexação da Áustria.

Há também algumas semelhanças ao nível da fraqueza do Ocidente, resultante do desinvestimento em defesa a partir dos anos 80, tanto no aspecto militar, como anímico e cultural, que aqui analisei há dois anos e o enfraquecimento militar e anímico das potências democráticas europeias na sequência do trauma e esgotamento que constituiu a 1ª Guerra Mundial, agravado por algumas opções ideológicas, como a da Frente Popular que venceu as eleições de 1936 em França, que apostava, erradamente, numa política de “apaziguamento” em relação à Alemanha, obviamente unilateral visto que esta, desde a chegada de Hitler ao poder em 1933, focou o essencial das suas energias na reconstrução da capacidade militar que lhe permitiu invadir quase toda a Europa a partir de 1939.

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Acentuando o paralelo, quando se reuniram no início de Fevereiro para discutir a crise, os aliados ocidentais escolheram exactamente a mesma cidade, Munique, onde em 1938 as potências democráticas (Inglaterra e França), numa crise muito semelhante, aceitaram a invasão dos Sudetas pela Alemanha, num vergonhoso culminar de uma série de cedências, iniciada anos antes, das quais a mais grave foi a passividade perante a ocupação militar da Renânia (proibida pelo Tratado de Versalhes como um “tampão” desmilitarizado) em 1936, numa fase em que ainda era possível travar a Alemanha, cedências essas que foram determinantes para convencer Hitler que as “degeneradas” potências democráticas não estavam dispostas a lutar, exactamente como na sequência de acontecimentos dos últimos anos.

Importa ainda desmontar as teorias que consideram a actuação russa uma reacção natural, e até legítima, ao crescimento da influência do Ocidente no seu “espaço vital”, e/ou que comparam, como se fossem equivalentes, a actuação do Ocidente na ex-Jugoslávia, com o expansionismo russo e que até “compram” a tese do incumprimento pela NATO do acordo de não se expandir para os países do ex-bloco soviético.

Começando pelo fim, importa entender que quando foi efectuado esse acordo, na sequência do colapso da União Soviética, a Rússia encontrava-se muito enfraquecida, tanto economicamente como até em termos de capacidade militar e de decisão política, devido às convulsões internas resultantes do fim do regime, pelo que quando a NATO aceitou não crescer para Leste, a Rússia, momentâneamente, não constituía a ameaça habitual.

A recuperação da capacidade militar da Rússia, aliada ao empolamento do sentimento nacionalista e a uma política imperial expansionista, reiniciada há mais de 20 anos no Cáucaso, constituem uma radical alteração das circunstâncias que estiveram na base do “acordo de não alargamento” e levaram os países da antiga esfera soviética a procurar uma aliança, neste caso a NATO, não podendo esta ficar vinculada a compromissos assumidos numa fase em que a atitude russa era completamente diferente.

É óbvio que não podemos ser ingénuos ao ponto de pensar que o Ocidente e nomeadamente os EUA, não aproveitaram a situação para expandir a sua influência, mas a verdade é que a Rússia, passando a ser novamente a ameaça que sempre foi para os países limítrofes, criou as condições para a caducidade de acordos celebrados em circunstâncias completamente diferentes.

Por outro lado, os países do antigo Bloco Soviético, estão traumatizados por décadas (e nalguns casos, séculos) de violações da sua soberania pela Rússia, nas suas várias formas (czarista, soviética e agora pós-soviética), tendo sofrido desde o fim da 2ª Guerra Mundial um domínio tirânico, que incluía a invasão militar como reacção a qualquer sinal de dissidência, como aconteceu na Hungria em 1956 e na Checoslováquia em 1968.

Outro aspecto que muito contribui para a grande desconfiança e aversão dos povos vizinhos em relação ao poder russo, é a sua tradição de agressão, brutalidade sem limites e de total desprezo pelos mais elementares direitos humanos (a começar pelos dos próprios russos), que caracteriza a cultura e a política russas.

Em termos politico-militares, essa cultura traduz-se no predomínio absoluto da imposição do poder sem qualquer tipo de limites, como decorre de exemplos recentes, em alguns casos com vítimas maioritáriamente russas.

Aquando da tomada de uma escola em Beslan ou de um teatro em Moscovo por terroristas, com elevado número de reféns, no primeiro caso maioritariamente crianças, a actuação das forças russas foi ela própria terrorista, matando todos ou quase todos, sem distinguir entre agressores e reféns (total ou maioritariamente russos), limitando-se a “repor a ordem”, sem qualquer preocupação com vítimas inocentes.

No Ocidente, pelo contrário, uma das maiores preocupações na formação e treino das forças especiais, particularmente as unidades anti-terroristas, é um treino muito intenso na precisão de tiro e identificação de alvos no meio da confusão e espaços apertados semelhantes aos cenários reais de tomada de reféns, para garantir a máxima eficácia na eliminação dos terroristas, evitando ou reduzindo ao mínimo as vítimas entre reféns.

Na cultura militar russa não existe essa preocupação, podendo a sua política reduzir-se a uma versão moderna da célebre ordem de Simon de Montfort no cerco de Béziers “matem-nos todos, Deus escolherá os seus”.

Temos outros exemplos deste tipo de cultura, como o abate do avião da Malaysian Airlines sobre o leste da Ucrânia em 2014, o abate do voo 007 da Korean Airlines em 1983 por um caça soviético, a violação sistemática de mulheres pelo Exército Vermelho, nos países que ia “libertando” do jugo nazi durante a Segunda Guerra Mundial, ou os massacres de civis na Síria e na Chechénia, estes aliás denunciados por Anna Politkovskaia, que pagou com a vida essas denúncias.

Conhecendo a mentalidade russa, que só respeita a força, o que aliás é comum aos ditadores megalómanos, o que mais contribuiu para a actual situação não foram as demonstrações de “força” do Ocidente, como a expansão da NATO, foram sobretudo as demonstrações de fraqueza, como o abandono dos rebeldes pró-ocidentais Sírios (maioritários no início da rebelião até serem “engolidos” pelos fundamentalistas, também por falta de apoio ocidental), o abandono dos Curdos em 2019, ou a vergonhosa e caótica fuga do Afeganistão.

Já com a invasão iminente, o anúncio insistente pelos responsáveis ocidentais de que a NATO não interviria militarmente, limitando-se às sanções económicas, foi uma “passadeira vermelha” para a invasão, pois o facto de não tencionar intervir militarmente, não obrigava a que o anunciasse de forma tão evidente.

Todas essas demonstrações de fraqueza apenas serviram para convencer Putin de que o Ocidente não estava disposto a lutar, exactamente como as cedências dos anos 30 perante a Alemanha nazi referidas no início do artigo.

Com esta agressão, é agora evidente até para os mais ingénuos que a miragem da paz eterna, que se mantém por si própria, não passa de uma perigosa ilusão, sendo urgente que a Europa volte a tratar a defesa como questão prioritária, em todas as suas componentes, nomeadamente material, humana e cultural, para que o paralelo com o que se iniciou em 1 de Setembro de 1939 não seja total.