O sistema político português encontra-se no momento mais delicado desde a consolidação da democracia em 1982, quando os militares regressaram definitivamente aos quartéis e o Tribunal Constitucional foi criado enquanto instituição contramaioritária. O PSD está no centro do furacão da mudança. Ao contrário do PS, cujos padrões de competição partidária estão, no fundamentalmente, consolidados e estáveis, tudo está em mudança em torno do PSD. As decisões que a actual direcção tomar terão consequências que podem enterrar definitivamente o sistema partidário surgido no pós-revolução ou, assim saibam ter a arte e a perícia para isso, conter o crescimento e a consolidação do Chega. Neste contexto, em vez de alimentarem o Chega, os democratas portugueses, de esquerda e de direita, têm a obrigação moral e ética de não colarem o PSD e a IL ao Chega. Transformar a direita numa grande amálgama de radicais pode servir os interesses partidários de curto prazo dos Socialistas. No entanto, a prazo, destruirá todos os padrões de competição partidária e a cooperação institucional entre as elites. Basta olhar para o caso de França para ter a prova provada de como alimentar a besta da extrema-direita para obter ganhos eleitorais de curto prazo acaba por ter consequências negativas para todo o sistema político. Aliás, no caso francês essas consequências não são maiores graças ao sistema eleitoral maioritário e a duas rondas, que ajuda a criar uma barreira extra aos extremismos.

Vem isto a propósito daquilo que gosto de chamar a inversão do ónus da prova na política portuguesa. Qual a utilidade da utilização desta instituição jurídica como analogia para falar do modo com comentadores e comunicação social tratam o PS e o PSD? Em minha opinião, a utilidade é muita. Sejamos claros. O PS é tratado como o partido natural de governo, com óptimas elites e cujas propostas, por definição, não merecem dúvida ou questionamento quanto à sua exequibilidade. Mesmo estando no governo há oito anos, não precisam de provar nada. Apenas a elite do PS pode corrigir os erros feitos pelo governo do PS. Brilhante! Pelo contrário, o PSD é tratado como um partido ao qual, de vez em quando, e de forma contrariada, é cedida a possibilidade de governar – tipicamente quando o PS está de rastos e não encontra maneira de continuar a argumentar que merece continuar a governar – e cujas elites são questionadas. Para além disso, mesmo quando apresenta propostas, independentemente do seu valor, a narrativa de imediato é que não existem quaisquer propostas.

Por isso digo que existe uma inversão do ónus da prova. No caso do PS, os adversários têm de provar que o partido e a sua liderança não estão preparados. No caso do PSD, é o próprio partido e a sua liderança que têm de provar que estão preparados. Esta pequena subtileza faz toda a diferença e tem consequências eleitorais profundas.

Vejamos alguns exemplos de como iniciativas interessantes do PSD são menorizadas pela inversão do ónus da prova. Em primeiro lugar, dizem-nos, o PSD não está a conseguir atrair elites com qualidade, nem gente com visão para o país. Há uns dias, o PSD apresentou o grupo de 17 economistas que vão aconselhar o partido na preparação do cenário macroeconómico para estas eleições. É certo que neste grupo constam algumas relíquias do partido que seriam dispensáveis. No entanto, constam também nomes de primeiríssimo plano como Ricardo Reis, talvez o melhor economista português de sempre. Para além disso, conseguiu atrair para os seus quadros gente como Alexandre Homem Cristo (declaração de interesses: somos amigos) ou o economista João Vale e Azevedo. Notem que, pelo contrário, Pedro Nuno Santos e o PS ainda não falaram nem dos economistas que estão a trabalhar com o partido no cenário macroeconómico, nem dos independentes que conseguiram atrair. Mais uma vez, o PSD tem de provar que está pronto. O PS, por definição, está pronto. Não precisa de ser escrutinado.

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Em segundo lugar, no passado fim-de-semana, houve uma quase obsessão com a ausência de Passos Coelho na convenção. Sejamos claros. Comenta-se à boca pequena em Lisboa que as relações entre o antigo líder e Montenegro já tiveram melhores dias. Mais, há ainda uma bela parte do PSD que está convencida que Passos Coelho seria o homem ideal para este momento do partido com capacidade de esvaziar o Chega. Sobre este último ponto não me pronuncio porque é da ordem da chamada fezada, perdoe-se o plebeísmo. Não há dados que permitam dizer que Passos esvaziaria o Chega, mas também não há para o seu contrário. Apesar da obsessão jornalística com o tema Passos Coelho, que sabemos bem qual é o objectivo que pretende atingir, o PSD, diferentemente do PS, pode apresentar todos os seus líderes sem ter vergonha de nenhum. Enquanto o PS tem um dos seus mais importantes líderes de sempre – não esqueçamos que foi o primeiro a levar o partido à maioria absoluta e a formar muitos dos actuais quadros que pululam o Rato – embrulhado num processo judicial gravíssimo. Quanto a antigos líderes estamos, portanto, conversados.

Por último, a suposta ausência de propostas de Luís Montenegro e da sua equipa. Podemos ter opinião diversas sobre a bondade, qualidade, e até utilidade, das promessas do PSD. Não podemos dizer que não existem. Isso é uma pura mentira. Montenegro elencou no último domingo um conjunto de medidas claríssimas que estão aí para ser escrutinadas e discutidas por toda a sociedade. No entanto, nas críticas que foram feitas imediatamente após o seu discurso, os comentadores de serviço falaram de coisas como “falta de audácia” ou “falta de ideias”. Outro comentador do regime, quando instado a falar sobre a convenção do PSD, preferiu gastar todo o seu tempo numa diatribe contra Santana Lopes, num paroxismo inexplicável, que chegou a dar pena ver. Uns por obediência ao chefe, outros por necessidade de colocar o pão na mesa, outros por vendettas, não conseguem admitir os factos. Podemos dizer que as propostas do PSD são más, não podemos dizer que não existem.

No próximo dia 10 de Março joga-se, mais do que provavelmente, um teste de fogo para a democracia portuguesa. Da minha parte, já decidi que não votarei nem no PS nem no PSD, e muito menos da agremiação populista, racista e boçal chamada Chega. No entanto, importa sublinhar precisamos de manter a democracia viva e não alimentar os fantasmas do populismo. Neste contexto, a inversão do ónus da prova, colocando PSD e IL ao Chega só serve os interesses do PS. E do Chega.