Vamos começar com as devidas clarificações, necessárias em tempos de pouquíssima tolerância. Não tenho qualquer simpatia pelo ainda Presidente da Federação Espanhola de futebol, Luis Rubiales. Tem um aspecto grosseiro e ordinário. Nunca poderia entender o beijo que deu na jogadora Jenni Hermoso. Não o deveria ter feito, e comportou-se como alguém habituado a abusar do seu poder e sem respeito pelos outros, neste caso por uma mulher.
Este artigo é sobre a reação ao beijo, o que mostra aspectos muito preocupantes sobre as nossas sociedades. Como disse Woddy Allen, e muito bem, Rubiales não atacou uma mulher numa rua escura e deserta. Cometeu um erro num estádio com dezenas de milhares de pessoas e perante milhões de espectadores. Rubiales não tentou violar Jenni Hermoso. Aliás, a jogadora e as suas colegas continuaram a celebrar a conquista do Campeonato do mundo durante horas até se lembrarem de se queixarem de Rubiales. No avião de regresso a Espanha, muitas jogadoras brincaram com o episódio, pedindo até mais um beijo.
Em tempos razoáveis e racionais, o caso teria morrido ali. Algumas e alguns teriam ficado surpreendidos, mas a maioria das pessoas já não se choca nada com um beijo na boca em público. O problema é que muita gente perdeu o sentido das proporções, a lucidez e, sobretudo, a sensatez. Bastou um par de dias até ministras e ministros do governo espanhol, incluindo o PM, Pedro Sánchez, pedirem o despedimento de Rubiales. Chegámos a um estado muito preocupante para ver um PM fazer uma intervenção pública sobre o que se passou após a final.
Rubiales foi imediatamente condenado. Houve pressões sobre as jogadoras e sobre Jenni para se queixarem de Rubiales, quando antes brincaram com o episódio. Aliás, até agora, nenhuma jogadora se queixou de assédio sexual feito por Rubiales. O tipo é ordinário mas não é um abusador sexual (pelo que se sabe até hoje, se se vier a saber que é, serei o primeiro a atacá-lo; acho o abuso sexual um crime horrendo). Mas, pelo menos na minha cabeça, há uma grande diferença entre um ordinário e um criminoso, entre errar e cometer um crime. Mais, muitos que noutras circunstâncias defendem a presunção de inocência até prova em contrário, foram agora muito rápidos a condenar. E em Espanha, as celebrações da vitória no mundial, que deveriam ter ocupado o lugar de destaque, passaram para segundo plano. A alegria deu lugar à intolerância e ao ódio. Foi muito mau.
As condenações a Rubiales mostraram uma sociedade onde as pessoas perderam o sentido das proporções, a lucidez, a razoabilidade e, cegas ideologicamente, transformaram-se numa multidão irracional a perseguir uma vítima. Já estivemos bem mais longe do costume medieval da caça às bruxas (ou aos bruxos). Isso deixa-me muito apreensivo com o que aí vem.