Um artigo publicado em 2019, na revista Foreign Affairs, intitulado “A New Cold War Has Begun”, apontou ao facto de nos aproximarmos de uma nova Guerra Fria, um novo confronto entre superpotências que poderia durar décadas. Os países referidos são a China e os Estados Unidos da América (EUA), envolvidos num conflito que é descrito como uma reedição da Guerra Fria entre EUA e a União Soviética. Robert Kaplan, o autor do artigo, define ainda a China como um adversário muito mais formidável do que a União Soviética/Rússia alguma vez foi, com o seu poder tecnológico e crescente poder militar. De resto, esse poder militar, principalmente o naval e aéreo, estariam à beira de rivalizar e pressionar para fora a presença americana no Pacifico Ocidental (Mar do Sul e Mar Oriental da China) numa estratégia que fará todo o sentido, tendo em conta que é um dos poucos lugares onde a China pode projetar o seu poder para o exterior. O autor até faz a comparação de importância desses mares com a área das Caraíbas no século XIX e inicio do século XX, uma extensão de água que permitia a projeção de poder dos EUA para o mundo e uma das chaves da sua crescente hegemonia. No caso do Pacífico Ocidental, permite a possível projeção desse poder e das frotas chinesas para o resto do Pacífico e Índico, sendo que garante ainda o controlo de Taiwan. A China é de facto uma powerhouse tecnológica, com um crescente poder militar, uma cultura milenar e um sistema político que permite decisões mais rápidas que a democracia americana. A competição existe e vai continuar a existir. No entanto, será um aparente exagero a consideração de “nova Guerra Fria”, sendo que não está previsto ainda um real desafio chinês pela hegemonia americana. Mais do que isso, é irresponsável aludir a uma Guerra Fria sem que os dados o indiquem.
A política americana para com a China de facto mudou, como já tinha mencionado em artigos anteriores. Os americanos olham agora a China como um rival sistémico com quem devem competir e impedir acessos no palco geopolítico. Mas se observarmos, a China e os EUA não estão a competir militarmente em lugar algum, nem diretamente nem em proxy wars (guerras entre dois países utilizando terceiros). Convém referir que em termos de poder militar e económico, China e EUA estão bastante distantes um do outro, algo que pode não ser compreendido pela maioria das pessoas, fruto de uma comunicação mainstream mais alarmista. O que temos atualmente é uma disputa comercial entre dois países que são a primeira e a segunda maiores economias mundiais, o que compreensivelmente causa efeitos de grande dimensão a nível internacional, com repercussões na vida das pessoas, empresas e outras nações.
Pensar numa competição ao nível de uma Guerra Fria é irrealista, observando as principais características da ultima Guerra Fria, ou seja, duas potências em confronto global, com poderes similares e ideologias rivais. Não estou a referir que não poderemos chegar a esse ponto, mas para já não temos previsto um conflito a esse nível. São vários os problemas com que nos deparamos ao referirmos esta competição como nova Guerra Fria. Existem vários desacordos entre EUA e China, principalmente económicos e comerciais, ou seja, quem controla este ou aquele porto ou quem é o maior parceiro comercial da Europa ou África. Existem também discórdias militares e o autor até faz referência a uma importante, que é o Mar do Sul da China. Portanto, temos aqui várias disputas, sem dúvida, tanto a nível económico, estratégico ou territorial. Ainda assim, EUA e União Soviética estavam a competir a um nível completamente diferente, pois havia uma verdadeira competição global, um conflito real em que pessoas morriam de ambos os lados. Foi um conflito que durou 50 anos, com guerras sangrentas na América Latina, África e Sudeste Asiático, inclusive com a China envolvida. Não nos podemos esquecer que a Guerra da Coreia, nos primeiros meses, foi praticamente um conflito sangrento entre americanos e chineses.
A China tem uma série de problemas internos a resolver antes de poder realmente disputar o palco global com os EUA. Apesar de ter uma cultura milenar, não é um país uniforme. Demograficamente, os Han são de longe a etnia mais representativa, mas existem províncias tão distantes dos domínios de Pequim que existe possibilidade real de conflito e fração. Isto para não mencionar as questões conhecidas de Hong Kong e Taiwan. É importante indicar também todas as disputas territoriais com os seus vizinhos, como a Índia, o Japão e os chamados Tigres do Sudeste Asiático.
Nas relações internacionais, um ponto fulcral é a crónica falta de aliados da China. A China não tem aliados se não contarmos com a Coreia do Norte. Os EUA, além de aliados nos restantes continentes, tem bastantes na Ásia e zona envolvente da China. Estes aliados são potências regionais tal como os chineses. Falamos de Japão, Austrália, Coreia do Sul, entre outros, que coincidentemente também têm disputas territoriais com os chineses. Olhando para a Guerra Fria do século passado, a União Soviética tinha dezenas de aliados e proxies, em variados continentes, que tinham interesses em comum, principalmente ideológicos.
Um aviso recorrente é o suposto desafio da marinha chinesa para com a marinha americana, pela hegemonia dos mares. É bom que entendam que em termos de poder militar nos mares, será com um grande esforço que a China poderá tornar-se na principal potência regional no Mar do Sul da China, isto comparando os chineses com o poder e experiência das restantes potências naquela região. A China não tem capacidade de projeção nos mares, sendo que está a mostrar dificuldades para assegurar o seu principal ponto de saída, que é precisamente o Mar do Sul da China, uma área longe de estar assegurada. Para termos uma noção das diferenças de poder entre China e EUA no que toca aos mares, basta a constante passagem de frotas US Destroyer junto a ilhas ou áreas que os chineses estão a disputar e consideram como suas. Imaginem se a China enviasse uma frota similar a passar junto ao Havai ou Ilhas Virgens americanas? Os chineses não correm esse risco porque a diferença de poder é tão grande que não faz qualquer tipo de sentido. É impensável.
O tema da ideologia também é uma peça central para perceber esta questão, porque foi também central na Guerra Fria entre EUA e União Soviética. A União Soviética oferecia uma alternativa ao capitalismo, com diferenças fundamentais no funcionamento das sociedades. Muitos dos seus aliados adotaram a doutrina comunista com impactos até os dias de hoje. As questões que se impõem são: existe uma verdadeira alternativa ideológica chinesa? Mais que isso, essa alternativa tem diferenças conflituosas com o sistema capitalista e a ordem de Bretton Woods? A verdade é que não. A diferença fundamental em relação aos EUA é o nacionalismo presente na China. A China é um sistema extremamente nacionalista, adverso a interferências estrangeiras. Existem diferenças fundamentais, culturais e ideológicas, mas tal como sempre existiu entre Ocidente e Oriente. Essas diferenças sempre coexistiram e não são inconciliáveis. O Ocidente sempre foi uma sociedade mais individualista, a oriental, ao inverso, mais coletivista. Essas não são diferenças ideológicas que façam colidir a nível global dois sistemas. Nem será central a característica autoritária da China, porque os EUA ao longo da sua história sempre tiveram relações estáveis com muitos Estados autoritários. O nível de relação que EUA e China têm é muito diferente da relação entre americanos e soviéticos, bastará analisarmos as trocas comerciais e o nível de investimento entre os países. Os americanos são os principais clientes da China e um dos seus principais investidores estrangeiros. As trocas comerciais entre EUA e União Soviética eram residuais, as duas nações não estavam nem de perto tão interligados economicamente e financeiramente, porque a relação entre as sociedades americana e soviética não era funcional, eram diferentes de mais e estavam em colisão. Estes são os factos que tornam completamente diferente a batalha ideológica travada entre comunismo e capitalismo durante a Guerra Fria, onde havia diferenças fundamentais, inconciliáveis, no modo de funcionamento dos países.
A afirmação de nova Guerra Fria é algo que pode ser conveniente para alguns no Pentágono e o complexo industrial-militar para uma nova vaga de políticas externas agressivas, alimentando novos conflitos no exterior. É a chamada “hawkish policy”, politicas pertencentes a um grupo de elementos que pretendem que os EUA tenham uma abordagem ativa no exterior, utilizando o seu hard power ao invés da diplomacia e de negociações. Do outro lado, dará razão aos elementos chineses que pensam que os americanos os pretendem bloquear e impedir o progresso do país. Esse é o verdadeiro perigo para a estabilidade global.
Todos estes problemas abrem a porta a possíveis conflitos, que de outra forma, sem a pressão mediática envolvente que impede de refletir, poderiam ser resolvidos. É um papão que é criado em ambos os lados, um papão irreal.