Durante 8 anos, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa precisaram de se apoiar mutuamente. Costa chegara a primeiro-ministro de uma forma original e precisava do beneplácito do novo presidente para se afirmar. Já Marcelo pretendia ser diferente de Cavaco e de Passos Coelho, ser um chefe de Estado próximo das pessoas, logo uma pessoa satisfeita e a vender boa-disposição. Tanto Marcelo como Costa compreenderam que as notícias tinham de ser boas; a mensagem, positiva; os ânimos, quando possível, vividos ao rubro. Tendo em conta a natureza dos dois, o desafio não foi difícil.
Não é que o Presidente da República não estivesse ciente das dificuldades. Na verdade, desde o início que se sabiam duas coisas: uma, que a governação de António Costa conduziria o país a um beco sem saída, com o Estado em dificuldades para manter o funcionamento das suas estruturas sociais e até políticas; outra, que na segunda metade do seu último mandato o Presidente da República teria de se demarcar do primeiro-ministro, caso quisesse deixar algum legado que não fossem as ‘selfies’.
Mas entre 2016 e 2022, Marcelo percebeu que era mais popular estar ao lado do governo. Os dados macro-económicos, apesar de não sustentáveis, eram positivos e a pandemia contribuiu para que não hostilizasse o governo. Fazê-lo seria demasiado arriscado e Marcelo pode ter muitas qualidades, mas não é pessoa para isso. Assim se torna claro por que apenas este ano o Presidente descobriu que o governo se limitou a reverter o que foi feito durante a troika, seja na lei laboral, no arrendamento e até na redução do número de funcionários públicos. Que apenas agora se tenha dado conta da falta de reformas, seja na justiça ou na saúde, na educação ou na segurança social, da paralisação na habitação e da inquietação nas forças armadas. Que o défice das contas públicas foi reduzido à custa de cativações (pontuais e não estruturais) e das ajudas do BCE, algo sem sustentabilidade, ao ponto de não passar de um castelo de cartas que uma leve brisa vinda da Europa deita abaixo. De então para cá não foi o país que piorou ou o governo que mudou, mas o interesse imediato do Presidente no actual cenário político.
Por seu lado, António Costa também sabe que a deterioração da economia e das contas públicas colocam em causa a narrativa em cima da qual montou a sua governação. Político excepcional que é percebeu que se foi positivo confiar no apoio do presidente, é agora essencial contar com a oposição de Marcelo Rebelo de Sousa. Não só Marcelo não é candidato a primeiro-minstro como um confronto com o Presidente apaga a visibilidade do líder do PSD, Luís Montenegro.
E é assim que Marcelo conta com o confronto com Costa para apagar a sua conivência com o governo PS, como Costa conta com as zangas de Marcelo para abafar a intervenção política da oposição não socialista ou à direita do PS. Isto no curto prazo. A médio, Marcelo espera que um António Costa saturado vá de vez para Bruxelas. A acontecer, teríamos novas legislativas, possivelmente um governo minoritário e um Presidente nas suas sete quintas. Aquando das últimas eleições presidenciais escrevi que a direita nada tinha a ganhar com a reeleição de Marcelo. Este é um homem só, que joga sozinho ao ponto de não termos um presidente, mas Marcelo na presidência. Uma realidade que se vai tornar ainda mais clara à medida que nos aproximarmos do fim do seu último mandato presidencial.
Entretanto, o país continua a assistir a uma peça de teatro excepcionalmente bem engendrada e representada por dois políticos fenomenais, mas com escassos atributos governativos. Desde 2016 que se engrandecem mutuamente, inicialmente felizes e agora zangados, enquanto o país aplaude ao mesmo tempo que as condições de vida pioram. Não há nada mais fácil para um governante que um povo empobrecer feliz.