O presidente norte-americano tem feito até agora a felicidade da comunicação social escrita, especialmente em países como Portugal, cujos jornais ninguém lê fora de portas e que podem, assim, dar-se ao luxo de fazer de Donald Trump o bombo de festa diário das suas classificações desonrosas. O mesmo já não se passa nas televisões, sobretudo nos noticiários, onde o que conta são, cada vez mais, as imagens repetidas até à exaustão, como sucede entre nós há três semanas sem parar com o ataque de Alcochete aos futebolistas do Sporting…

Depois de tentar informar-me na internet – jornais e canais de televisão nacionais e internacionais – acerca do encontro de Singapura entre Trump e o déspota da Coreia do Norte, confirmei que aquilo que fica nos olhos e nos ouvidos do grande público são, pelo menos por ora, as imagens incansavelmente repetidas do festivo encontro e dos mútuos abraços entre os dois grandes líderes, cujos objectivos perante a “opinião pública mundial” foram plenamente alcançados, já que esta está hoje muito mais descansada do que antes com os alegados riscos de uma anunciada guerra nuclear lá no remoto oriente.

Enquanto Trump acreditava ter somado pontos na sua campanha publicitária em prol da paz nuclear junto do eleitorado norte-americano, com os olhos postos nas eleições intercalares deste ano, Kim Jong-Un tinha a certeza de ver aumentada a sua respeitabilidade como líder a nível mundial e caseiro. Estamos pois no pleno domínio da propaganda mediática moderna, veiculada de forma cada vez mais cega pelas imagens televisivas incansavelmente repetidas. “The Economist” comentava que “a observação do Sr. Kim, segundo o qual muitas pessoas imaginariam estar numa fantasia saída de ‘um filme de ficção científica’, bem podia ser verdadeira”!

E o semanário britânico continuava: “Perfeitamente à vontade, Kim sorria e posava para as ‘selfies’ (sim, não fui eu que inventei esta!) com a faíscante skyline de Singapura, cujos residentes haviam sido instruídos pelas autoridades locais para aumentar o efeito das luzes”! As causas e consequências do “evento” perdiam-se, pois, no céu luminoso de Singapura filmada pelas cadeias de televisão do mundo inteiro. Nem o criativo Guy Debord imaginaria, em Maio de 1968, como a sua emergente “sociedade do espectáculo” se tornaria banal 50 anos depois!

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Entretanto, a Coreia do Sul, embora seja um “milagre económico” aliado dos Estados Unidos e o mais directamente interessado nestas alegadas negociações, foi afastada do encontro, enquanto Trump e o seu inquietante interlocutor decidiam a sorte da “Península da Coreia” no seu conjunto e do próprio Japão. O presidente norte-americano entusiasmou-se de tal modo com o brilhante acontecimento organizado pelos donos da casa que, depois da assinatura das vagas declarações do magro documento final, anunciou para muito em breve a cessação das operações militares conjuntas que os Estados Unidos têm mantido com a Coreia do Sul desde o fim da guerra entre Norte e Sul há mais de 60 anos. Como inacreditável justificação por parte da maior economia do mundo, Trump apresentou a redução das despesas de carburante…

Com raras excepções recrutadas entre os especialistas em relações internacionais, que não se coíbem de prever complexas evoluções mundiais para as décadas mais longínquas, a maioria dos comentadores dos jornais e revistas acredita que, se alguém ganhou alguma coisa com “o mais importante encontro político do século”, foi o neto de Kim Il-Sung, o líder comunista fundador da cruel dinastia dos Kim que hoje se vê tão “vindicated” — “justificada” é uma tradução possível – como os ayatollahs iranianos se terão sentido quando Obama assinou com eles o tratado que Trump rasgou há pouco tempo… Voltas que os Estados Unidos dão enquanto o resto do mundo amocha!

Para já, os jornais mais circunspectos, como “The Wall Street Journal” e o “Financial Times”, apenas se distinguem ao nomear o grande vencedor do encontro de Singapura, hesitando entre considerar que Kim Jong-Un obteve “uma grande vitória”, como crê o jornalista Gideon Rachman, e o “The Wall Street Journal” acredita que a China foi, uma vez mais, “uma inesperada vencedora”. Aparentemente, é o que vem acontecendo desde que o presidente Nixon rasgou os acordos de Bretton Woods e o seu secretário de Estado, Kissinger, viajou para a China a fim de se encontrar com Mao Tse-Tung, dando início, já lá vão quase 50 anos, ao longo mas irresistível processo de globalização em curso sob as luzes faíscantes da ribalta televisiva…

Se há uma lição a tirar de mais esses tweets que Donald Trump continuará a enviar-nos, é que, com a involuntária ajuda da moderna tecnologia ao actual presidente dos Estados Unidos, este é capaz de ganhar – ou, pelo menos, não perder – votos na terra dele, enquanto a Europa que se crê alfabetizada continuará a dar más notas a um Trump que considera semi-iletrado. Como se tem visto, porém, nada ganhamos com isso!