As recentes notícias de fechamento das urgências de obstetrícia no mesmo fim de semana em vários pontos do país são apenas mais um episódio do colapso em marcha do SNS. Serão, infelizmente, cada vez mais frequentes no futuro próximo, porque este governo e o PS (que governou o país em 13 dos últimos 17 anos, os últimos dos quais com o apoio parlamentar da esquerda) falharam em toda a linha, pese os muitos avisos que foram dados. Hoje, este governo e o partido que o sustenta são avessos a qualquer ideia de reforma, estão reféns de uma ideologia que se traduz em pior serviço público, cultivam sem pudor o nepotismo na nomeação das chefias e, sobretudo, mostram sinais de um enorme desprezo pelo principal activo do SNS: as pessoas que nele trabalham diariamente e que clamam há anos por condições humanas e humanizantes de trabalho.

Seria impossível abordar todos os muitos problemas do nosso SNS num único texto de opinião e deixarei para outros a explicação de porque é que cada vez mais teremos urgências a fechar. Mas, tendo ouvido a Sra. Ministra da Saúde dizer que, apesar de tudo, as urgências de obstetrícia estavam asseguradas por causa do “funcionamento em rede dos hospitais” aproveito o mote para falar de um dos grandes males do SNS: a esquartejada gestão da sua rede.

Com efeito, fruto de um modelo de financiamento hospitalar perverso, da suborçamentação crónica dos hospitais e talvez também do cinismo de alguns, a apregoada “rede hospitalar” está hoje em dia mais assente numa espécie de capelinhas que têm os seus orçamentos isolados uns dos outros do que numa verdadeira rede que gira os recursos de forma racional e integrada. Ora, como os conselhos de administração de uma capelinha são premiados e reconduzidos pela tutela se gastarem menos, um dos maiores incentivos à “boa gestão” de uma capelinha (para além de tentar espremer para além do razoável os recursos humanos à disposição) é tentar transferir custos para outras capelinhas (que são do mesmo patrão, o Estado) numa triste competição onde quem fica mais a perder são esses “incómodos” sujeitos que não têm qualquer lugar de relevo na concepção deste sistema: os doentes.

Sem querer ser demasiado exaustivo dou apenas dois exemplos (reais) deste funcionamento por capelinhas, quer na interacção entre unidades hospitalares, quer na articulação com os Cuidados de Saúde Primários.

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Exemplo 1. Uma senhora idosa residente no concelho A encontra-se por qualquer razão no concelho contíguo B. Sente-se mal e vai ao SU do hospital mais próximo, no concelho B. Após várias horas na urgência, de ter passado por mais do que um médico e ter feito vários exames conclui-se que tem de ser internada. Ora, o hospital B até pode ter vagas de internamento que isso não interessa: a senhora “não pertence à área de residência” do hospital B e, como tal, as ordens superiores são para “transferir” a doente para o hospital da sua área de residência, em A.* Aí chegada, entrará em outro caótico circuito de urgência, esperará no global mais tempo para ser internada (ficando, por isso, pior servida) e consumirá mais recursos materiais e humanos à “rede”, já que outros médicos terão de despender tempo precioso a reavaliar e a inteirar-se da situação clínica de uma doente que já estava orientada. Ao mesmo tempo, o hospital B estará a receber os indivíduos da sua área de residência que cometeram o pecado inverso de se ter deslocado primeiro a outro hospital em A ou noutros concelhos.

Exemplo 2. Um senhor apresenta queixas oftalmológicas ao seu médico de família em consulta no seu Centro de Saúde e é referenciado à consulta da especialidade no respectivo hospital da área. A consulta é aceite. É avaliado em “primeira consulta”, prescrito um tratamento e estabelecido um plano para ser reavaliado um ano depois. Mas a consulta de seguimento não fica desde logo agendada no hospital. Seria uma “segunda consulta” e parece que parte do financiamento das capelinhas (ou outro incentivo qualquer) provém das “primeiras consultas”. Ao invés disso, o utente tem alta da consulta (!) com o recado para, daí a um ano, voltar a falar com o seu médico de família para ser referenciado novamente. Mais uma vez, com prejuízo do tempo do doente e do médico de família que podia ter visto outro doente nesse tempo e que tem de voltar a fazer novo pedido para nova “primeira consulta”. No fim de contas, ninguém parece perceber ou importar-se com o facto de o patrão ser o mesmo (o Estado) e ir pagar mais por causa dos perversos incentivos que criou e dos cínicos gestores que colocou a governar.

Estes exemplos são meramente ilustrativos, dado que exemplos semelhantes se multiplicam às dezenas diariamente por todo o país (serão aos milhares ao fim de um ano), como certamente muitos colegas meus poderão corroborar facilmente. Acrescem a estes muitos outros exemplos de absoluta irracionalidade na gestão do SNS que podia igualmente ter elencado.

Por fim, todos estes problemas são difíceis de combater porque, a agravar à política das capelinhas temos demasiados políticos de panelinhas (em vários níveis da cadeia de poder) que, em lugar de se baterem por verdadeiras reformas (e pelo bem-estar dos doentes e dos profissionais de saúde), apenas desejam perpetuar-se no poder. É a lógica do poder pelo poder (por desejo de prestígio ou do que for) quando o que precisávamos era de quem almejasse o poder para servir. Existem ainda alguns assim, desta última estirpe, mas infelizmente nada conseguem fazer, porque são demasiado poucos e acabam atropelados por um sistema que parece, cada vez mais, viciado em mediocridade.

Não estou por isso optimista. A verdadeira mudança não pode vir com os mesmos actores que nos conduziram até aqui. Não sei, honestamente, se eu próprio que escrevo este texto faria melhor. Mas há certamente gente íntegra e competente em Portugal capaz de fazer melhor. Muito, colossalmente, melhor.

* Diga-se, a talho de foice, que é direito do doente ser atendido e permanecer no hospital do SNS que lhe aprouver, mas a esmagadora maioria desconhece esse direito e muitos são transferidos sem o saber porque ninguém cuidou ou teve sequer tempo de lhes explicar.