A meados dos anos 90 do século passado, chegou a um subúrbio de Lisboa uma família de cidadãos portugueses, oriundos de Moçambique e de ascendência goesa, pai empregado numa grande empresa nacional, mãe e dois filhos, aos quais a escola, de imediato, concedeu apoio social – uma série de coisas gratuitas e isenções de pagamento disto e daquilo. As restantes famílias daquela turma encolheram os ombros. Um dia, a família que beneficiava de apoio social comprou um carro novo, gama média-alta. Os restantes pais, entre si, deixavam escapar as suas indignações até ao dia em que um deles resolveu dirigir-se à escola e pôr em causa o apoio social que todos pagavam a uma família que, afinal, tinha meios suficientes para se governar e, como ficava demonstrado com o novo automóvel, até para consumir acima da média das restantes famílias. A escola respondeu que o apoio era dado por se tratar de uma minoria étnica. A resposta não foi considerada satisfatória, o apoio acabou por ser retirado. E aquela família continuou a viver como até então.
A história é verídica – eu era um dos alunos daquela turma. E é, talvez, todo um retrato. O país, embalado pelo primeiro Governo dos sentimentos de António Guterres e pela torneira jorrante de fundos comunitários pagos por outros cidadãos europeus, iniciava então uma rota de políticas públicas que alargava a síndrome do coitadinho, que não era uma inovação, a factores raciais e étnicos. Até então, o Estado promovera abundantemente a tal síndrome do coitadinho, mas limitava o seu alcance aos portugueses brancos-da-silva, até por insuficiência migratória, e porque, da esquerda à direita, ninguém até essa época se mostrava particularmente condescendente com a pobreza negra, mesmo que muita dela decorresse do abandono a que o próprio Estado tinha votado os seus concidadãos das ex-colónias por força da cor da sua pele. Coitadinho era todo aquele que precisasse: de um lugar na função pública, na repartição, na secretaria dos tribunais, nas empresas públicas, e mais tarde de um apoio, de um subsídio. Não houve analfabeto ou imbecil, ou, na melhor das hipóteses, algum competente que, não tendo emigrado e tendo por perto um padrinho, não tivesse beneficiado, de alguma forma, de um jeitinho, não raras vezes um lugar no Estado, onde parecia caber sempre mais um, verdadeiro poço sem fundo de desorganização, absentismo e corrupção, onde os direitos se iam alargando e consolidando, desde o tempo da ditadura, à medida que a vida melhorava, mais crise, menos crise.
Ora, a meio da década de 90 a política do coitadinho virou o ponteiro para as chamadas minorias, enquanto, também por força da adesão à CEE, o país ia implementando medidas e mecanismos legais que tornavam o velhinho sistema de benefícios, compadrios, cunhas, adjudicações, cada vez menos acessível ao português médio. Este acabou vendo-se entalado num sistema em que os instrumentos de acessos a prebendas e benefícios se estabelecia como um exclusivo das elites, nomeadamente partidárias, ou de minorias, fossem elas mais ou menos pobres. Que a realidade não é exactamente esta, todos sabemos (afinal, há um hábito muito português de nunca considerar que se é dependente do Estado, mesmo quando se é de facto). Que este foi um sentimento que, ainda que inconscientemente, se foi solidificando, ninguém tenha dúvidas. Entretanto, passaram-se 30 anos, 25 dos quais em crise permanente, e o mundo é hoje, para o bem e para o mal, já pouco dado à política do coitadinho.
O que me parece, em tudo isto, relevante é que não é possível viver num tipo de Estado – e não se trata apenas do nosso – que investe no financiamento do coitadinho esperando algum tipo de retorno social. O país, em ditadura ou em democracia, sempre apostou mais em fornecer o peixe do que em facilitar o acesso a canas de pesca. Esse é, talvez, um dos grandes problemas que nos tem sido largamente potenciado, não por motivos mais à esquerda ou mais à direita, mais liberais ou mais social-democratas, mas porque parece que assentou arraiais uma certa ideia de socialismo miserabilista, controlador, de pastoreio e que viu sempre uma oportunidade de poder quando desencantava uma nova modalidade de famélicos da terra, e que tem cada vez menos adeptos. Pode ser que percebam tudo muito melhor quando constatarem que aqueles que, mesmo hoje, tratam como as novas vítimas da fome talvez não tenham interesse em seguir-lhes os passos – e que a vasta maioria dos que são injustamente postos do lado diabólico desta nova luta de classes irá acabar por se saturar, com ou sem razão, e queira afirmar, mesmo pelos piores caminhos possíveis, que ou há moralidade ou comem todos.
P.S. Numas pesquisas que andei a fazer nos últimos dias, constatei que, em 2024, foi publicado um estudo que afirmava que a economia paralela portuguesa representava 17% do PIB, e que estava a descer há duas décadas; e que, em 2023, foi publicado outro estudo que dizia que a economia paralela portuguesa representava 35% do PIB e que vinha a aumentar desde 1996. Na verdade, ninguém saberá ao certo quanto representa a economia não declarada, as transacções não conhecidas, os salários não declarados. Mas talvez não seja arriscado dizer que há, em Portugal, mais dinheiro disponível do que se crê. Talvez isso ajude também a explicar algumas das nossas idiossincrasias.