O caso Sócrates mostra-nos bem como há gente naquela instituição própria das democracias – comunicação social independente – que não percebe o que é uma democracia. Os anos formativos passaram-nos no Estado Novo ou durante a década seguinte ao 25 de abril e, vai daí, nunca mais abandonaram os mecanismos de respeitinho e temor. Não concebem esse conceito excêntrico de uma consciência individual que avalia o mundo por si e pelos seus valores. Um indivíduo teima numa opinião que não está validada pelas autoridades ou, no mínimo, por umas eleições? O drama e o horror.
Vejam por exemplo os disparates que foram ditos e escritos sobre a presunção de inocência de Sócrates. A presunção de inocência é um conceito jurídico que garante que ninguém é condenado sem que existam provas sólidas de um crime cometido. Ponto final. Ora como qualquer pessoa pensante percebe, o que existe e ocorre no mundo, seja criminoso ou não, não é apenas o que é suscetível de ser provado em tribunal – e provado segundo regras que são elas próprias mutáveis e discutíveis, não desceram dos céus como presente intergaláctico de uma qualquer deusa da justiça do mundo greco-romano.
Alguém ser absolvido em tribunal, ou nem sequer ser acusado, não é selo de garantia de que não cometeu nenhum crime: é reconhecimento de que não há indícios suficientemente fortes para levar à privação de liberdade, ao pagamento de multas e indemnizações, à censura pública em forma de condenação. Desde logo porque muitos crimes são difíceis de provar – os criminosos geralmente aproveitam-se da falta de testemunhas e de registos de imagem e som para cometerem os crimes. Só nas séries televisivas como The Closer é que Kyra Sedgwick convence os meliantes a confessarem tudo. Acresce que a justiça é administrada por humanos, limitados, com a tendência para disparatar que todos temos (mesmo quando com boas intenções), e suscetíveis a preconceitos e estados de alma.
Mas do que se lê por aí os argumentos pela presunção de inocência de Sócrates são ainda mais salazarentos que esta constatação de que a justiça humana é falível. Segundo nos dizem, enquanto não houver uma sentença judicial transitada em julgado, devemos permanecer todos intimamente convencidos que Sócrates é inocente como um rebento de jasmim a aromatizar um chá verde. Quando, e se, houver condenação pelos tribunais, passaremos então, no momento em que lermos ou ouvirmos tal ansiada notícia, a acreditar convictamente (por ordem do tribunal) que Sócrates é culpado dos crimes por que for condenado.
É isto: temos gente que tem espaço em jornais e televisões, numa democracia liberal em 2017, a afirmar que os indivíduos não podem ajuizar por si próprios da culpabilidade de um ex primeiro-ministro. As convicções de cada um não podem ser por si determinadas, nada disso, temos de ficar à espera que um tribunal nos diga como devemos considerar, na nossa consciência, Sócrates – inocente ou culpado. Vade retro conceito demoníaco de formar opinião em regime de livre iniciativa. O estado ensina-lhe generosamente em que acreditar.
Para mim isto é mais ou menos a descrição de um mundo distópico – só temos autorização para pensar e crer como os tribunais nos guiam – mas aparentemente por cá é opinião valorizada. Em vez de ser recebida com gargalhadas e comentários de ‘o tipo é lunático’, estas opiniões são tidas como sensatas.
Passa-se o mesmo com o escândalo infindável com o tempo que demora a investigação a Sócrates. Pobre homem perseguido. Que justiça malévola. Vamos convocar uma manifestação para carpirmos todos juntos esta justiça abusadora que esmaga como um mosquito um cidadão indefeso. Importante é concentramos as críticas no ministério público e nos tribunais. Nada de lembrar que o governo de José Sócrates e de António Costa fez uma reforma penal em 2007 e que, nesta, os prazos de investigação de que Sócrates se queixa foram considerados bons para aplicar à populaça não política.
O que importa é questionar o tempo da investigação – de que Sócrates é o primeiro responsável político – não vá alguém lembrar-se de perguntar como paga Sócrates as custas judiciais de todos os recursos fracassados que interpôs. Ou os advogados. Porque a grande fortuna da mãe afinal era mesmo só alegada.
Temos de reconhecer: quem se entrega a argumentar tanto disparate não o faz em defesa de Sócrates. Está a defender o seu valor de mercado depois de ter gloriosamente enfiado o barrete da modernidade e do otimismo socrático. Afinal que credibilidade têm os jornalistas e comentadores que passaram anos enamorados de Sócrates e defendendo-o mesmo nos momentos indefensáveis? Ou a atacar quem investigou Sócrates, do MP ao Correio da Manhã? Nenhuma, evidentemente. A quem interessa ler e ouvir a opinião de pessoas confusas que não viram como Sócrates era tóxico? A ninguém. Se erraram tão rotundamente aqui, errarão no resto.
Em todo o caso, nada disto é importante, porque estamos todos muito felizes. Quem o garantiu foi o nosso magnífico governo, que no dia internacional da felicidade (ontem) disponibilizou uma página para os governados lá irem relatar as suas histórias de felicidade. Eu, por mim, fiquei arrebatada por termos gente na agremiação governativa que nunca ouviu falar do Facebook e do Instagram. Já que o (des)governo gaste dinheiro dos contribuintes em imbecilidades rematadas e infantilizantes como um site de partilha da felicidade – com intuito claramente propagandístico, ora vejam como o país vive alegre e descontraído sob a geringonça – deixa-me irritada e infeliz. Prefiro não ver sites de felicidade pré-fabricada pagos com os meus impostos. E insisto em avaliar por mim a culpabilidade de Sócrates. Definitivamente não tenho jeito para socialista.