Crer no Inferno é das coisas mais razoáveis que existe. Sigamos o raciocínio de Dante, um homem que dificilmente seria dado como o exemplo de uma pessoa com pouca cultura ou conhecimento. Na sua monumental “Divina Comédia”, o poeta florentino ao abeirar-nos do Inferno, no Canto III, escreve: “Ó, vós que entrais, abandonai toda a esperança” (as traduções variam mas a ideia fica). Podemos simplificar dizendo que Dante, crente na existência do Inferno, o tinha como o lugar onde a esperança deixa de existir.

O que é a esperança, afinal, e para que ela nos serve para admitirmos a razoabilidade da existência do Inferno? A esperança é também sabermos que o mal de hoje pode não ser o de amanhã. A esperança é, ao não termos prova de que o futuro seja mau, o consolo de que o que agora nos aflige pode não afligir-nos amanhã. A esperança não tem sequer de ser colocada como um sentimento religioso; pode até ser um reconhecimento de que, não tendo bolas de cristal, tudo pode mudar para melhor—é até uma espécie de possibilidade científica. Ter esperança é, no fundo, umas das disposições possíveis consequentes da nossa ignorância do futuro.

O modo como nos seguramos à esperança pode ser diverso. Pode ser mais religioso, de facto, mas pode também ser mais científico (eu não acredito propriamente em coisas científicas, uma vez que para mim toda a ciência é passível de erro mas, para não complicar demasiado o texto, aceito o uso do termo). Ninguém pode dizer a um grande sofredor que é certo e sabido que, por ele ser esse sofredor tão grande, amanhã terá de continuar a sê-lo. Não. Nunca se sabe. O nunca se saber é a melhor coisa que se pode saber, no caso do grande sofredor no presente que eventualmente assim se consolará diante da possibilidade de poder não ser o grande sofredor do futuro.

Nesta medida, toda a esperança nasce da falta de conhecimento. Como não se conhece o futuro, espera-se que ele possa ser menos ruim do que o presente. O esperançoso é celebrante da ignorância. Ter esperança é também uma aceitável forma de humildade epistemológica. Como não sei, posso ao menos esperançar. Voltemos, portanto, à questão da existência do Inferno e como, no hipotético fim da esperança, ele se torna um facto muito mais razoável do que podemos julgar. Recordemos: para Dante, o Inferno é o lugar onde a esperança acaba. Como pode Dante estar tão certo disso? De facto, quem é Dante para dizer que é possível haver um lugar onde a esperança acaba? Mas outra pergunta nos é devolvida: quem somos nós para julgarmos que a esperança pode existir para sempre?

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Se, de facto, a esperança puder chegar ao fim, o local em que esse fenómeno se situa pode ter um nome: Inferno. A esperança poder chegar um dia ao fim é uma crença tão razoável como qualquer outra. Quem somos nós para garantir um futuro onde a esperança não acaba? Ser razoável com o que não sei leva-me a poder ter esperança, porque amanhã pode não ser tão mau como hoje, mas leva-me também a poder reconhecer que ela pode acabar, havendo um lugar onde os antigos localizavam o seu fim. O Inferno é, afinal, a razoabilíssima crença de que a esperança pode chegar ao fim.

O que torna tudo isto eventualmente complicado para nós, que por sistema nos julgamos mais espertos do que os antigos (o tal snobismo cronológico que o C.S. Lewis mencionava), é haver datas e lugares concretos para realidade que aferrolhamos na cabeça. Ou seja: se o Inferno for mental, toda a gente acredita nele facilmente (quem é que ao viver ainda não se sentiu no Inferno?). Mas se, como Jesus, encarnar num tempo e num espaço, aqui d’el Rei que é uma convicção absurda! Por que é que eu, enquanto cristão, não me escandalizo com a existência do Inferno? Porque, ao acreditar em Jesus, já aceito a ideia de que coisas não-físicas podem cingir-se a um tempo e a um espaço. Se o verbo que criou tudo se limitou a categorias que ele próprio inventou, fazendo-se pessoa no tempo e no espaço, por alma de quem é que o lugar onde a esperança se perde não pode também concretizar-se segundo a mesma lógica? Deus encarnou? O Inferno, então, mais do que uma categoria mental, pode e deve existir num lugar e num tempo.

O verdadeiro escândalo não é que o Inferno exista. O verdadeiro escândalo é que Deus se tenha feito pessoa. O tramado não é a danação, mas a encarnação. A partir do momento em que por aqui andamos, com um corpo encarnado no tempo e no espaço, não será grande surpresa que o melhor e o pior nos seja oferecido assim mesmo: num tempo e num lugar. Espero que a esperança um dia acabe para que o melhor futuro, tendo um tempo e um lugar, seja presente. Já vos disse que, quando a pessoa acredita em Jesus, crer no Céu é a coisa mais razoável que existe?