A súbita realidade do inacreditável torna tudo, de repente, possível. É um sentimento com o qual é difícil lidar, porque não estamos preparados para mudar, quase de um dia para o outro, o sistema de crenças que nos permite a orientação na vida. O inacreditável permanece inacreditável mesmo que se exponha à nossa frente como um facto maciço do qual não conseguimos desviar os olhos. E, ao vê-lo, é como se percebêssemos que tudo pode acontecer, que não há limite para a subversão da ordem das coisas, que as regras todas se podem transformar num ápice. Tal é o estado em que a inominável barbárie de Putin nos mergulha.
Sobra, é claro, uma admiração incondicional. A admiração pela coragem, a determinação e o patriotismo do povo ucraniano e do presidente Zelensky. Nunca tínhamos visto nada assim, mesmo que os livros de história nos falem de coisas semelhantes. Mais uma vez, o sentimento é de uma extraordinária surpresa: afinal isto existe. Afinal existe o amor da pátria, que pode unir um povo no seu combate pela liberdade, como se todos participassem de um mesmo movimento e de uma mesma paixão.
E sobra também, no coração do inacreditável, uma detestação sem falhas para com o poder brutal do puro desejo de conquista. Putin transformou-se claramente, aos olhos de todos, no exemplo vivo da desumanidade, do inimigo da humanidade. Nada nele foge a essa caracterização, tudo a confirma. A selvajaria das suas acções. O cinismo indisfarçável das suas palavras. A ideia que guia a sua particular alucinação da destruição de um povo.
Por cima destes sentimentos, e por eles provocada, uma outra emoção se constrói: o desprezo. O desprezo para com aqueles que, face à evidência, tudo fazem para a ocultar e usam as suas palavras para não ver. Os seus métodos são antiquíssimos e conhecidos. Tais métodos fundam-se numa tentativa de desrealizar o que está à vista de todos, de dissolver aquilo que é irredutivelmente singular e que brilha como uma evidência em generalidades que visam racionalizar o sem-sentido.
Seja por meio da invenção de uma causalidade bastarda, que inverte a relação entre agressor e agredido, seja através do recurso a uma história que supostamente explicaria – sem, no entanto, para os espíritos subtis, a justificar – a acção do agressor. O primeiro meio opera através da suposição que uma pura possibilidade – ainda por cima declaradamente inverosímil: a instalação de armas nucleares em território ucraniano – é a causa eficiente para uma acção real, que surge vestida de necessidade – a invasão da Ucrânia. Com base nisto, o agredido passa a agressor e consuma-se a dissolução do singular no geral. Porque esta tentativa de explicação repete, sem variação alguma, um esquema que foi vezes sem conta usado no passado. O agressor está pré-definido desde tempos imemoriais: são os Estados Unidos, que apoiam regimes que os servem servilmente na ambição incontida de subjugar a Rússia (no passado, a U.R.S.S.).
O segundo meio é mais sofisticado. Recorre à história e à psicologia dos povos, acrescentando-lhe um perfume de realismo. Sugere simultaneamente a complexidade da situação, que não pode ser vista a preto e branco, e a necessidade de ter em conta as esferas de poder. Também aqui o singular se dissolve no geral e também aqui a evidência da agressão tende a ser ocultada. A história e a psicologia dos povos servem para generalizar e a generalização, com um arremedo de erudição, desvia a atenção do facto concreto bruto. As palavras acumulam-se, com o propósito único de encobrir a evidência.
Face ao inacreditável, que continua inacreditável mesmo quando experimentamos a sua realidade, é com estes sentimentos – a admiração, a detestação e o desprezo – que temos de reorganizar a nossa orientação no pensamento e na vida. O maior de todos eles é a admiração. Zelensky e os ucranianos são a melhor lição de amor da liberdade que nos poderia ser dada.