É qualquer coisa de anterior à política e até à moral. Quando vemos na televisão os rostos dos ucranianos, homens e mulheres, que viram as suas casas destruídas por bombardeamentos russos e os seus familiares, amigos e vizinhos feridos ou mortos, há algo que acontece. As neurociências falam-nos da existência de neurónios-espelho. Quando, por exemplo, alguém sofre face aos nossos olhos – mesmo que seja na televisão – há certos neurónios que são nessa pessoa activados e exactamente os mesmos neurónios são activados em nós mesmos, espectadores da dor. Pelo menos é o que nos dizem certas hipóteses dos neurocientistas. Há uma espécie de substrato neuronal daquilo que vulgarmente chamamos empatia. Não, é claro, que nos sintamos idênticos àquela pessoa, com ela fundidos, mas estamos com ela. Experimentamos directamente, à nossa maneira, a sua dor. Podemos exprimir, ou espelhar, essa dor. Como dizia David Hume, ecoando Leibniz, “as mentes dos homens são espelhos umas das outras”.

Não se trata simplesmente de nos pormos no lugar do outro. Podemo-nos pôr no lugar do outro sem sentir empatia alguma. O pensamento liberal, por exemplo, aconselha a pormo-nos no lugar do outro para reconhecermos a sua autonomia e liberdade. E o pensamento liberal enuncia, sob esse aspecto, uma clara obrigação da nossa vida em sociedade. Ou podemo-nos pôr no lugar do outro simplesmente para melhor calcular as suas acções. É o que fazem, entre outros, o jogador de xadrez e o general no campo de batalha. Põem-se no lugar do adversário ou do inimigo para melhor imaginarem as jogadas e acções mais eficazes que eles podem levar a cabo para os derrotar, para lhes fazerem o pior que podem. Em várias circunstâncias da nossa vida – e maximamente na vida política – é isso mesmo que nós próprios fazemos. Nem sempre os vizinhos são, como queria Cristo, propriamente “o próximo”.

Na empatia que sentimos face à dor alheia pomo-nos sem dúvida no lugar do outro, mas sem ser por obrigação de pensamento ou para melhor calcularmos as suas acções. É algo, de facto, muito mais directo e sem fins práticos, políticos ou sequer morais. Descobrimos o outro, a outra pessoa, sem necessidade de nenhuma inferência, como algo de presente a nós mesmos. Compreendemos a dor que sente a vítima do bombardeamento ou a do refugiado que foge do cenário de guerra. Não é um simples contágio emotivo, como aquele que se dá, por imitação, em certas circunstâncias da vida colectiva. É algo mais profundo, na medida em que funda a possibilidade daquilo que em filosofia se chama a intersubjectividade: o sentimento de pertencermos a um mundo comum constituído por uma pluralidade de pessoas que têm acesso mental umas às outras e que através desse acesso se modificam a si mesmas.

É importante notar que a empatia se dirige sempre ao individual, ao singular, a uma pessoa em concreto. Não sentimos empatia com a Ucrânia, sentimos empatia com os indivíduos ucranianos um de cada vez, quando testemunhamos, ao modo directo destas coisas, a sua derrelição individual. À sua maneira, Aristóteles percebeu bem este processo quando analisou a atitude dos espectadores da tragédia. O espectador experimenta piedade, ou compaixão, e temor face à personagem trágica. É algo de passionalmente sentido, nada tem de um cálculo intelectual. A compaixão tem por objecto o homem que é infeliz sem o merecer; o temor tem por objecto o homem semelhante a nós mesmos. Dito de outra maneira: vemos alguém sofrer e descobrimos que podíamos ser esse alguém. Colocamo-nos no lugar do outro de um modo directo. Sentimos espontaneamente o que ele sente.

É a partir dessa experiência pré-moral e pré-política, a empatia, que se podem instituir os juízos morais e políticos e a própria simpatia, tal como habitualmente hoje em dia entendemos a palavra. A empatia é “com”, a simpatia é ”por”. Temos empatia com os indivíduos ucranianos, tempos simpatia pela Ucrânia. A simpatia, ao contrário da empatia, supõe uma escolha de valores morais e políticos. Passamos do plano do singular ao plano do geral ou do universal. A condenação da bárbara invasão russa encontra-se neste último plano. Tal como a oposição entre democracia e autocracia ou entre liberdade e servidão. A simpatia – moral e política – não pode, no entanto, existir sem a experiência da empatia, fundadora da tal intersubjectividade. A empatia não basta para a constituição da moral e da política, não é uma causa suficiente destas, mas é um seu requisito prévio indispensável, uma sua causa necessária. Uma causa necessária da simpatia.

E, já agora, da antipatia. A antipatia que sentimos por aqueles que, de forma descarada ou velada, manifestam simpatia pela invasão russa tem a ver, num primeiro plano, com a falta de empatia, ou a empatia negativa, que neles supomos em relação aos indivíduos ucranianos. E ainda, é claro, com a empatia que neles sentimos com Putin. Este último aspecto coloca, de resto, uma questão muito interessante: podemos nós estabelecer uma relação empática com monstros? A resposta é certamente: sim. E a prova disso é, banalmente, que há quem a estabeleça. Mas como compreender essa estranha relação empática? Um filósofo aconselha-nos, para o percebermos, a imaginariamente ultrapassarmos os limites impostos pelo sentimento da decência humana, começando por conceber actos veniais que se encontram ainda dentro dos limites da nossa imaginação e, insensivelmente, progredirmos até atingirmos actos atrozes. Pessoalmente, tenho seguido o conselho do filósofo quando vejo, na televisão, um ou outro militar que não disfarça a sua admiração por Putin ao comentar a guerra e tenho feito progressos. Vou percebendo melhor como se abandona os patamares da mais básica decência humana.

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