Parece que foi há muito tempo, mas foi há cerca de 10 anos. Por imposição europeia e no sentido de harmonizar competências no espaço da União, foi implementado no ensino superior português aquilo que na altura se chamava de Processo de Bolonha. Em termos muito simples, significava uma pequena revolução na organização dos cursos universitários. As licenciaturas passavam a ter três anos, os mestrados continuavam a ser de dois, mas tinham um carácter mais de complemento de licenciatura do que a transcendência funcional anterior. Os doutoramentos, menos afetados, atravessaram também algumas alterações para que passassem a ser aquilo que deveriam: cursos de iniciação à carreira científica e não um processo de ascensão celestial.

E, como tudo o que acontece em Portugal, foi “uma tragédia”. A verdade é que nunca há nada em Portugal que preste, mas, sempre que se tenta mudar alguma coisa, é o inferno sobre a Terra. Ainda que todos os outros façam diferente, nós resolvemos ser originais naquilo que menos interessa e defendemos com orgulho aquilo que dizemos detestar.

Passados estes anos, os resultados são admiráveis. Em termos de qualidade, os cursos sofreram tal progresso que há uns em que os alunos portugueses têm que se bater com os estrangeiros para conseguirem entrar. O prestígio das universidades portuguesas é hoje algo que era inimaginável há 10 anos e, para quem anda por lá, consegue perceber a quantidade de estrangeiros que as frequentam. Umas com muitos, outras com poucos, mas a verdade é que antes era com nenhum. Sim, não estamos a falar de Cambridge ou do ETH, mas já não estamos a falar daquelas “coisitas miseráveis” do início do século.

O interessante neste progresso é que as universidades em causa são do Estado. As pessoas que lá trabalham, trabalham para o Estado. É verdade que não são públicas no sentido em que não são para quem quer, são para quem pode. No entanto, cumprem com a missão atribuída e, curiosamente, começou na altura em que o acesso ao dinheiro do orçamento do estado lhes começou a ser reduzido.

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Talvez por estarmos a falar nas pessoas mais qualificadas do país, a verdade é que lhes foi confiada uma missão com uma razoável autonomia. E pegaram na sua missão, nos constrangimentos impostos em termos financeiros, em muitos casos estruturais, e fizeram aparecer a excelência. Não apareceu em todo o lado, é certo, nem todas as faculdades conseguiram elevar-se ao nível das suas congéneres europeias, nem todas souberam ou puderam fazer o trajeto. Mas o saldo é claramente excelente.

Por isso quando vejo aparecer mais um daqueles “génios” que sabe tudo sobre a reestruturação e reforma do Estado português, vem-me sempre à cabeça o processo de europeização das universidades portuguesas em que a reforma consistiu, basicamente, em destruir o que existia e acreditar no brio e empenho das pessoas a quem pagamos o ordenado para que, em cada caso, se soubessem adaptar às circunstâncias impostas.

Vejamos o caso das escolas (não superiores) e vamos olhar para o caso da Educação porque é aquele que envolve mais gente. As escolas que funcionam de forma independente servem melhor as populações que as escolas que dependem funcionalmente do Estado. Sejam elas privadas de propriedade privada ou públicas de propriedade privada (contratos de associação), os resultados são tendencialmente (muito) melhores, quer em termos daquilo que o próprio ministério considera como resultado, os exames, quer naquilo que é a satisfação dos pais. Daí a pergunta óbvia ter que ser: porque é que as escolas todas não podem funcionar de forma independente, seja quem for o dono da escola?

As coisas que saem do Estado em termos de educação são de qualidade confrangedora. Até há bem pouco tempo, era raro aparecer um exame sem erros. O único contacto direto do Ministério da Educação com os alunos é produzir dois exames por disciplina no ano inteiro e, mesmo assim, com erros. Estamos a falar de níveis de incompetência raros. Agora que parece que a fase dos erros já passou (apesar da aposta dos media parecer ir no sentido oposto), manter os exames em segredo até à sua realização é o grande desafio para a próxima década na 5 de Outubro. E é este o estado que estamos a usar para determinar e controlar o trabalho de milhares de pessoas que têm que ser produtivas e que estão em frente da única razão para termos um estado, os nossos filhos.

Ao longo da minha vida profissional já passaram algumas centenas de pessoas por mim e são muito raros os casos em que têm uma predisposição para a asneira. A nossa perspetiva tem sido que desde que tenham uma formação adequada à tarefa, normalmente vão atingir os objetivos, ainda que nem tudo o que lhes está destinado dependa completamente delas, mas isso é a vida. E o normal é que, acumulando tempo, experiência e conhecimento, a excelência aparece mais cedo ou mais tarde desde que cada um possa adaptar as suas forças e as suas características aos desafios e especificidades do problema que tem pela frente.

Não tenho grandes dúvidas que se as escolas que dependem do Ministério da Educação não tivessem essa dependência, seriam tão boas como as escolas de propriedade privada, em todos os parâmetros que possamos pegar. Não teriam hipismo e ballet? Nem disso estou certo. Só quem não conhece as pessoas que, apesar de todas as contrariedades e de toda a pancada que levam, já hoje se esforçam por levar às escolas do estado algumas das coisas que normalmente associamos às escolas privadas, é que diriam que isso não pode acontecer e tomem o exemplo da esgrima nas escolas do interior de Cascais. Havendo essa independência do ministério, aparecer hipismo na EB2,3 da Damaia seria algo que em nada me surpreenderia. Porque esse capital existe, só não é libertado para a sociedade.

Claro que tudo isto traria consequências nefastas para aqueles que vivem da ideia de um Estado centralizado. Não seria fácil para os sindicatos de professores começarem a ser associações de defesa dos trabalhadores distribuídos por algumas centenas de escolas independentes, em vez de serem instrumentos políticos de pressão sobre a república que ninguém pediu. Nem seria fácil para os milhares de estrategas da causa pública cuja “visão integrada e multidisciplinar das interações e otimizações dos vários níveis de governo” sabem o que é melhor para todos, sem passarem para lá da segunda circular. Provavelmente, teriam que arranjar outra forma de vida. A verdade é que nem todos os cidadãos se dão mal com a ideia de Estado centralizado, não só na Educação, como em todas as funções do Estado. E isto foi demonstrado da pior maneira nas últimas semanas, onde a incompetência centralizada gerou morte e brechas gravíssimas na segurança de todos, mas cuja responsabilidade já sabemos vai ser de uma qualquer divindade menor.

Por isso quando me questionam o que acho da reforma do Estado, eu respondo que acho ótimo. Já está na idade de se reformar de uma vez por todas e sair da frente. Claro que passar todas as funções para unidades realmente produtivas e descentralizadas como escolas, hospitais, câmaras, etc. será o inferno sobre a Terra, o início do apocalipse, como foi Bolonha. Iremos ver pinturas do PCP em paredes durante décadas contra a fragmentação do poder popular, apesar de 96% dos portugueses não votarem no PCP e terem hoje menos poder no estado que os 0,05% que são militantes do partido. Todo o tipo de gente que se monta no mau Estado vai povoar os media com os perigos da descentralização, ainda que isso ofenda a competência de cada uma das pessoas que metemos em frente aos nossos filhos, aos nossos pais e em quem confiamos a nossa segurança. Mas vão-me desculpar se eu confio mais na competência destas pessoas que na de alguém que só tem dois exames para fazer no ano e, mesmo assim, sai asneira. Confiemos, elas vão resolver e serão excelentes se as deixarem ser.

PhD em Física, Co-Fundador e Partner da Closer