Acaba de chegar à Assembleia da República uma proposta de lei do Governo que retira os gabinetes da Interpol e da Europol da esfera da Policia Judiciária, integrando-os no Sistema de Segurança Interna.

Não há nenhuma razão de funcionalidade que justifique isto. A cooperação policial internacional decorre geralmente em moldes satisfatórios.

Pelo contrário, a nova proposta tende a gerar anomalias. Por um lado, os habituais parceiros externos da PJ poderão restringir a cedência de informações policiais a um orgão essencialmente politizado como é o SSI, com dependência directa do Primeiro Ministro. E, por outro, incrementam-se as crónicas guerras de protagonismo entre forças e serviços de segurança que passarão a reivindicar no SSI os nacos mais suculentos da cooperação policial internacional.

Esta vontade da concentração do poder das informações não é nova. Reedita o projecto de fusão dos serviços intelligence civis, que germinou por aqueles lados há duas décadas e na prática acabou por vingar encapotadamente – com inconvenientes tanto para o desempenho das respectivas actividades como para a salvaguarda das liberdades e garantias dos cidadãos e o próprio Estado de direito.

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Nessa altura, os paladinos da junção dos SIS e do SIED também alegaram critérios de racionalidade e eficiência. A justificação era aparentemente simples: a tradicional separação entre as informações de segurança (respeitantes ao território nacional) e as informações estratégicas (recolhidas no estrangeiro) perdera relevância num mundo globalizado em que os grandes perigos eram cada vez mais transfronteiriços. O desenvolvimento das ameaças transnacionais, em particular o terrorismo e a criminalidade altamente organizada, recomendava portanto uma drástica transformação organizativa do sistema de informações nacional visando optimizar a partilha e a criação de sinergias ou forças combinadas.

Chegou a argumentar-se que a distinção conceptual entre segurança interna e segurança externa deixara pura e simplesmente de fazer sentido. Tratava-se de uma “ficção burocrática”, de uma relíquia da Guerra Fria ou até das caducas soberanias nacionais do Tratado de Vestefália.

Só ficavam por explicar os motivos pelos quais a generalidade dos países do marco ocidental persistiu no anacronismo de manter a separação entre as agências incumbidas da produção de informações destinadas à protecção do território nacional e aquelas dedicadas à recolha de informações no estrangeiro.

Na realidade havia, e ainda há, muito boas razões para que os serviços de informações de segurança e os serviços de informações estratégicas se conservem organicamente separados.

A primeira razão tem a ver com a natureza distinta, antagónica mesmo, dos respectivos fins: os primeiros são defensivos e protegem, os últimos são ofensivos, devassam e espiam. A couraça e o projéctil, en bref. O que implica métodos de actuação inconfundíveis, quase opostos, assim como tipologias técnicas, humanas e organizativas muito diferenciadas. A fusão destes dois ramos da intelligence é afinal inviável, conduzindo na prática à anulação de uma pela outra ou à anestesia de ambas – como parece ser actualmente o caso em Portugal.

Existe porém outra razão, ainda mais ponderosa, para rejeitar em definitivo a integração institucional dos serviços de inteligência, a tal “fusão no topo” pretendida com o modelo do actual Sistema de Informações da República Portuguesa: os perigos que essa concentração pode vir a representar para as liberdades e garantias dos cidadãos e o próprio Estado de Direito. De facto, enquanto os serviços de informações de segurança operam no próprio território nacional sujeitos à lei, desenvolvendo actividades encobertas e sigilosas fiscalizáveis pelos órgãos políticos e jurisdicionais do próprio Estado, os serviços de informações estratégicas são por natureza estruturas de pura clandestinidade, orientada para a prática nos países alvo de actividades intrinsecamente ilícitas, designadamente a espionagem.

Como é óbvio, a fusão institucional de uma agência vocacionada para a acção clandestina no estrangeiro com um organismo com competências de pesquisa e recolha no território nacional, pela porosidade e contaminação que propicia, comporta riscos iniludíveis para a salvaguarda das liberdades, garantias e direitos fundamentais dos cidadãos e do próprio Estado de Direito.

Por todos estes motivos – os de ordem prática ou funcional mas também aqueles relacionados com a preservação da própria ordem constitucional interna – a generalidade dos países ocidentais (Alemanha, França, Itália, Grã Bretanha, Estados Unidos, até Israel) continua a optar pela rigorosa separação dos seus organismos de intelligence – ao contrário de Portugal.

Sucede que um dos principais protagonistas da infeliz reforma concentracionista dos serviços de informações em 2004 (sendo então director-geral adjunto do SIED) foi precisamente o actual Secretário Geral de Segurança Interna – que tanto se empenha agora no controlo directo das informações policiais. Um diplomata que passou também largos anos em Moscovo, onde a cultura e os tiques da autocracia e o perfume dos Czares nunca se evanesceram completamente. Como, de resto, está hoje à vista do mundo inteiro.