É-nos ensinado e relembrado sucessivamente que o nosso regime democrático, como em todas as repúblicas liberais, está enquadrado por leis, separação de poderes, tradições, práticas procedimentais e instituições independentes. É inquestionável que assim sucede. Mas há uma regra não-escrita que permanece crucial para compreender como todas as peças deste puzzle se encaixam em harmonia: há um partido que decide quando é que a lei se aplica, quando é que a regra é válida, quando é que a excepção se impõe, quando é que a tradição impera. Esse partido é o PS.

Os últimos dias trouxeram um novo exemplo, à conta da discussão sobre os tempos de intervenção dos novos partidos no parlamento. Ao contrário do que muitos comentadores avaliaram, o cerne da questão nunca esteve nos precedentes parlamentares ou no cumprimento escrupuloso do regimento da Assembleia da República, muito menos em eventuais “incoerências” dos partidos à esquerda – tudo isso seria o importante numa discussão racional e séria, mas há muito que a seriedade se perdeu. A bússola necessária para compreender este debate está em conhecerem-se os interesses circunstanciais do PS. Em 2015, dava jeito permitir ao deputado-único do PAN discursar no hemiciclo? Então, instaure-se uma excepção ao regimento. Em 2019, é conveniente silenciar os novos partidos? Nesse caso, cumpra-se rigorosamente o regimento. Sim, nas palavras do deputado socialista Pedro Delgado Alves, “a democracia também é aquela coisa chata das regras e regulamentos”. Pois, é. Mas a maior das chatices é verificar que o cumprimento das regras ou a concessão de excepções varia em função das conveniências socialistas.

Não é a primeira vez, nos últimos anos, que surge uma tão-evidente exibição desta “soberania” de quem entende o regime democrático como extensão da sua vontade. Quando, em 2015, se levantou a possibilidade (até então inédita) de um derrotado em eleições legislativas formar governo, lançou-se o debate: as eleições legislativas serviriam, para além de eleger 230 deputados, para a escolha de um primeiro-ministro? Se o entendimento fosse que “sim”, então a legitimidade de António Costa estaria posta em causa. E, como tal, não faltaram “soberanos” para logo virem esclarecer que tal manifestação de preferência popular era um absurdo. Eventualmente, até será. O problema é que, em 2004 e perante igual dilema (a nomeação de Santana Lopes como primeiro-ministro, sem convocação de eleições), os mesmos “soberanos” interpretaram ao contrário: Santana Lopes não poderia ser primeiro-ministro porque para esse efeito não havia sido “eleito” em eleições legislativas.

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