Um quarto (26%) dos juízes portugueses diz acreditar que houve, nos últimos três anos, juízes corruptos a receber subornos. Sobre a distribuição dos processos judiciais, também cerca de um quarto (27%) acredita que houve irregularidades nesse período. O estudo da Rede Europeia de Conselhos de Justiça (RECJ) saiu no início deste mês de Agosto, com a amostra portuguesa a ter 494 magistrados inquiridos em 2021. É difícil imaginar indicador mais preocupante sobre o funcionamento da Justiça: esta percepção negativa não vem de portugueses anónimos inquiridos na praia ou no café – vem dos corredores do sistema judicial, com os juízes a fazerem esta avaliação sobre os seus colegas.

A gravidade é tão notória que, de imediato, deveríamos ter conhecido as reacções do governo e do Conselho Superior de Magistratura (CSM) a este inquérito. Não foi assim. O CSM colocou-se de fora: recusou comentários. E o governo fez de conta que não havia relatório, até que, sob pressão, a Ministra da Justiça falou esta semana, relativizando quaisquer conclusões negativas – e meteu os pés pelas mãos.

Nas palavras da Ministra, o relatório “acontece em relação há um ano [2021], que foi um ano muito particular em que houve ocorrências excepcionais” com magistrados. Completando, a Ministra insistiu ainda que “essas ocorrências excepcionais não poderiam deixar de marcar a percepção que, do ponto de vista do senso comum, têm as pessoas em geral”. E, para que não sobrassem dúvidas, esclareceu: “os juízes também são pessoas como nós, que vivem inseridos na sociedade”.

Não há forma mais suave de dizer isto: a argumentação da Ministra é um embaraço nacional. Porque não é verdade que os resultados deste estudo possam ser justificados com episódios excepcionais de 2021, uma vez que iguais percepções já existiam no relatório de 2019 – basta consultar o arquivo da rede europeia para o constatar. E porque, ao desvalorizar desta forma os indicadores do estudo sobre a (falta de) independência da Justiça, a Ministra disse-nos ao que vinha: alimentar a ilusão de que está tudo bem e não fazer nada. Ao menos, que o dissesse assim, em vez de nos tomar por parvos.

Só para exemplificar, olhe-se o relatório da mesma rede europeia em 2019. Nesse relatório, cerca de 20% dos juízes portugueses inquiridos consideraram que colegas seus haviam sido alvo de actos corruptos (portanto, dados só ligeiramente inferiores aos de 2021) e apenas pouco mais de metade rejeitava a possibilidade de isso acontecer. De resto, já em 2019, os juízes tinham uma fraca percepção sobre a independência da Justiça portuguesa, pois 50% concordava que as decisões judiciais eram influenciadas pela comunicação social (só na Croácia a percepção consegue ser pior). A pressão não é somente externa, mas também interna. Em 2019, Portugal era um dos países europeus onde mais juízes se consideravam pressionados internamente nas suas decisões judiciais (por exemplo, por via de processos disciplinares). E, para acabar em beleza: em 2019, 24% dos juízes portugueses inquiridos considerou que havia irregularidades na distribuição de processos judiciais – um valor apenas ligeiramente abaixo do publicado em 2022.

Poderia continuar a comentar as declarações da Ministra. Por exemplo, para explicar o óbvio: em matéria de Justiça, os juízes não são “pessoas normais”, mas sim parte central do sistema judicial, pelo que as suas percepções não podem ser comparadas ao “senso comum” da população em geral. Seria tempo perdido, obviamente. É que o fundamental da mensagem da Ministra está nas entrelinhas. O que realmente disse foi: eu vou fingir que não há problema, através de uma justificação estapafúrdia e desmontável numa pesquisa de 2 minutos, porque não estou para ter de lidar com isto. Ficámos avisados. É, de resto, um bom retrato de um governo que vive a desvalorizar diagnósticos e a anunciar sucessos, enquanto varre problemas para debaixo do tapete.

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