Com a crise e as suas sucessivas réplicas, fomo-nos concentrando no acentuado recuo da classe média, no chamado “desemburguesamento” do povo (Alain Greenspan), na falta de esperança das jovens gerações, transformadas em novos párias sociais (nem-nem), mas esquecemo-nos que, entre os “ricos”, também se criou paulatinamente uma clivagem. Os poderosos de entre os poderosos: uma nova superclasse.

David Rothkopf chamou “superclasse” a esta nova classe para a distinguir da elite tradicional, cujo destaque e poder resultava essencialmente na herança e no nome de família, centra-se na meritocracia adquirida à escala do mundo, na banca, nas grandes universidades, nos grandes media globais, na criação de patentes, no exercício de cargos em organizações internacionais ou ainda em grandes empresas multinacionais (reúnem-se, por exemplo, uma vez por ano na Suíça, aquando do Fórum Económico Mundial).

Esta superclasse corresponde às elites das quais falava Christopher Lasch na sua obra “The Revolt of the Elites and the Betrayal of Democracy”. De acordo com Lasch, as elites americanas ao criticarem e afastarem-se do processo democrático, tentando viver à parte do povo, contribuíram para a decadência da democracia, fenómeno que hoje também se replica em todo o Ocidente.

O sucesso da superclasse assenta, não na tradição ou num território específico, mas na mobilidade. Esta superclasse ou nova elite, apenas passa por “casa” em trânsito, a caminho de um novo “evento”, uma qualquer conferência de alto-nível ou para uma estadia em algum exótico resort. A sua perspetiva sobre o mundo é essencialmente turística e não uma perspetiva comprometida ou apaixonada com a democracia do seu Estado-nação. Trata-se, assim, de uma classe pós-nacional.

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Apesar de não constituir um todo homogéneo, a superclasse já representa uma nova realidade a ter em conta. A reforçar esta convicção vimos na passada semana na campanha para as próximas eleições americanas Donald Trump a referir-se a esta “elite global” como um inimigo a abater.

Tal como aconteceu no referendo no Reino Unido, a City londrina versus a Grã-Bretanha rural e operária. Será esse também, porventura, o desfecho dos próximos confrontos eleitorais na Europa continental. Em suma, não podemos escamotear a nova superclasse e o seu papel na regulação e governança (ou na sua ausência) mundial.

Hoje, mais de vinte anos depois da publicação dessa obra seminal de Lasch, assistimos a um efeito sanduíche. Isto é, estamos face a um efeito conjugado da revolta das elites (face ao excessivo peso do estado, à falta de liberdade económica e mobilidade laboral) com a revolta do povo, dos excluídos da globalização, dos nativos face aos imigrantes (face à falta de emprego seguro, ao fim das regalias sociais, ao fim da proteção estatal e local).

Mas é sobretudo por influência da nova superclasse que assistimos à reconfiguração da política como um jogo. O jogo do poder. Um jogo de todos contra todos. Um jogo em que o político deixa de ser visto como um líder, o timoneiro ou, na versão mais suave, um verdadeiro primus inter pares, para se transmutar em mais um jogador, entre muitos outros, no grande jogo do poder global.

Governar significou sempre pilotar, seguir um rumo, navegar de acordo com sinais, informações para evitar e ultrapassar o previsível e o imprevisível.

Governar hoje, todavia, passou a significar jogar, aceitar a imprevisibilidade, considerar os imprevistos, não como ameaças a evitar, mas como oportunidades integradas na própria dinâmica do jogo. Isto é, numa era de insegurança, risco, incerteza, nada melhor que a aleatoriedade do jogo como a melhor metáfora para a política (ou a ausência da mesma) nos dias de hoje.

Tal mudança leva a que se questione se um governo pode fazer a diferença na vida dos Estados, das cidades ou das organizações supranacionais. Num mundo de elevada complexidade, onde a rutura, a adaptação e a flexibilidade são permanentes, onde os atores principais já não se encontram do lado da política, mas sim do lado da economia, dos media, da ciência, da tecnologia. Será que o governo conta?

Vivemos numa constante e ansiosa mobilidade, com as redes a representarem os novos laços entre as elites, conjuntamente selando os contatos entre os outros grupos sociais. Vivemos em transição permanente. A contingência, a precariedade, passaram a ser os estados normais para o individuo contemporâneo. É preciso manter todas as opções em aberto. Nenhuma solução ou perceção se imporá a outra. O niilismo instalou-se como realidade.

A decisão, a situação-limite, a necessidade de assumir um só caminho, foram substituídas pelas apresentações de escolha múltipla onde os diversos jogadores aceitam vários resultados, não só como possíveis, mas como igualmente aceitáveis.

O político, enquanto jogador, ocupa o poder sem verdadeiramente o exercer no sentido clássico. Está presente no circuito, mas espera aleatoriamente pelo sentido da decisão, sendo que esta pode em abstrato, não ter mesmo qualquer sentido. As jogadas são lançadas como supostas medidas esperando-se pelas diversas reações antes de se alcançar o hipotético melhor resultado.

Há quem fale numa era dos “pós factos” ou da “pós verdade” nas relações sociais e, consequentemente na política. Não sei se entrámos nessa nova era dos “pós-factos” ou da “pós-verdade”, mas convirá voltar a Hannah Arendt e ao seu ensaio “A Verdade e a Política”, para nos relembrarmos que a política, pertencendo ao reino do razoavelmente possível e lidando com a ética da responsabilidade, pode prescindir de revelar a verdade, mas não pode sobreviver na ilusão e na mentira.

Talvez seja por isso que se começa a falar de pós democracia. E a pós democracia corresponde à clara transferência do poder de decidir da esfera da política para as outras esferas da vida, como a economia, os media, a tecnologia ou a ciência. O novo jogo do poder radica na perda de centralidade da política e da sua capacidade de tomar decisões. Pois, por último, mais importante do que o resultado do jogo será o poder de definir as suas regras, estas sim, impostas pela nova superclasse.

Professor universitário