1 As bacantes
O culto a Diónisos constitui um elemento central da cultura grega clássica. Com origem na Trácia ou Frígia, foi considerado por muitos como uma manifestação bárbara e selvagem que escapava ao modo mais moderado de vivência dos gregos. O seu lado mais emotivo ficaria ligado ao culto prestado pelas mulheres: as bacantes ou ménades eram conhecidas pelos excessos celebrativos, que convocavam a dimensão mais irracional da experiência humana, como é retratado por Eurípides na tragédia As Bacantes. A título de introdução, Maria Helena da Rocha Pereira descreve o ritual:
“Trienalmente, em pleno Inverno, descalças e com vestes ligeiras, mulheres em grupo subiam às altas montanhas cobertas de neve e aí, ao som da música de flauta e tamboris, efetuavam correrias e frenéticas danças (oreibasia), apanhavam e dilaceravam um animal selvagem (sparagmos) e, finalmente, comiam-no cru (omofagia), alcançando assim o referido êxtase.”
Eurípides convoca a amaldiçoada casa real de Tebas e a morte de Penteu, descrevendo o castigo severo que recai sobre quem recusa a natureza divina de Diónisos. Ao fazê-lo, contudo, destaca o lado irracional do comportamento humano, estimulado pela dimensão coletiva do culto que pode conduzir a excessos inaceitáveis. Como nos diz W. Burkert:
“O êxtase dionisíaco não é obra de um indivíduo isolado, mas um fenómeno de massas, que arrebata as pessoas à sua volta de forma quase contagiante. Isso exprime-se miticamente, dizendo que o deus está sempre rodeado de um enxame enfurecido de devotos e devotas.”
Na sua História da Filosofia Ocidental, Bertrand Russell nota que o êxito de Diónisos não é surpreendente: “Como todas as comunidades que se civilizaram rapidamente, os gregos, ou pelo menos uma parte deles, desenvolveram um amor do primitivo e um desejo de vida mais instintiva e apaixonada do que a sancionada pela moral corrente.”
Será, então, inevitável que períodos excessivamente marcados pelo uso da razão e da lógica despertem uma reação mais emotiva? É que na clássica oposição entre razão apolínea e paixão dionisíaca joga-se a própria noção de sabedoria. Ouçamos o coro de Eurípides:
“O que é a sabedoria? Ou que dádiva mais bela
dos deuses, aos olhos dos homens,
do que manter a mão segura
sobre a cabeça do inimigo?
O que é belo é sempre estimado.”
2 A viragem emocional
Talvez não seja inevitável, mas parece ser essa a reação a que assistimos hoje. Após um século marcado pelo discurso da racionalidade e lógica científica, as últimas décadas têm registado uma viragem emocional. Conhecida nas ciências sociais como emotional ou affective turn, essa reação remete para a compreensão do papel fundamental que é desempenhado pelas emoções no modo como pensamos, nos relacionamos uns com os outros, lidamos com o mundo e teorizamos acerca dele.
O português António Damásio é um nome incontornável neste domínio, após ter provocado o clássico princípio filosófico de Descartes – “Penso, logo existo” – com um argumento que exemplifica bem a emotional turn: “Tenho emoções, logo existo”. No livro Deus Cérebro, baseado na série documental da RTP, Damásio afirma:
“Os sentimentos são uma vantagem decisiva, um aliado precioso nesta longa caminhada de luta pela sobrevivência desde há milhares de anos. Graças à maquinaria dos sentimentos e emoções, o ser humano conseguiu enfrentar os perigos da natureza ou de animais ferozes, sobrevivendo a desafios maiores do que a sua dimensão. Apetrechando-se de um conjunto de estratégias que permitiram chegar ao ser complexo que somos hoje. Sem darmos conta, os sentimentos e emoções sempre estiveram lá.”
Apesar da primazia geralmente concedida à razão, os sentimentos foram experiências mentais primordiais na nossa evolução e são ainda fundamentais como resposta a ameaças à sobrevivência: “A génese das emoções, a génese da vida afetiva está ligada à necessidade de sobreviver.”
Em A estranha ordem das coisas, Damásio esclarece:
“Sabemos que várias emoções “negativas” são, na verdade, importantes protetores da homeostasia. Entre elas contam-se a tristeza e a mágoa, o pânico e o medo, e a repulsa. A zanga e a raiva são casos especiais. Continuam a fazer parte dos instrumentos emocionais humanos porque, em determinadas circunstâncias, podem garantir uma vantagem ao indivíduo em fúria, levando o adversário a recuar.”
Em bom rigor, esta observação já havia sido intuída poeticamente. Pensemos na feminista negra Audre Lorde: “The white fathers told us: I think, therefore I am. The Black mother within each of us – the poet – whispers in our drams: I feel, therefore I can be free.” O salto é necessariamente político: “Poetry coins the language to express and charter this revolutionary demand, the implementation of that freedom.” Não surpreende, pois, que as políticas identitárias tenham elevado as emoções ao estatuto de ferramenta de luta política.
E é precisamente este elemento que encontramos hoje na esfera pública e na disputa política, particularmente exacerbado pelo espaço digital. As redes sociais fornecem o habitat perfeito para fenómenos de massas e tornam-se ferramentas eficazes para atacar posições contrárias e silenciá-las. Mas a agressividade destes fenómenos pode ser compreendida a partir das ideias de Damásio. De facto, o argumento central destas reivindicações é o de que determinadas ideias ou discursos invalidam a existência de certas pessoas ou grupos, razão pela qual devem ser silenciados; e sendo percecionados como uma ameaça à existência, a reação emocional é despertada como mecanismo de sobrevivência. Assim, evolutivamente as emoções aparecem como o mecanismo adequado para lidar com algo que é percecionado como uma ameaça, e essa reação é reforçada pela eficácia na obtenção dos resultados pretendidos, pois a agressividade consegue, por regra, o silenciamento. A consequência é a de que o comportamento emocional se generaliza.
No entanto, António Damásio também nos diz: “mesmo quando garantem uma vantagem, a zanga e a raiva tendem a ter um custo elevado, sobretudo quando se transformam em ira e fúria violenta.” No final, todos ficamos a perder.
3 A tirania das emoções
A viragem emocional tem sido particularmente relevante no domínio das ciências da educação e tem moldado uma nova forma de encarar o processo de aprendizagem. Pensemos, a título de exemplo, na popularidade do Monstro das Cores, usado entre nós no nível pré-escolar. No entanto, e sem deixarmos de reconhecer a necessidade de adaptar a escola aos novos tempos, devemos refletir sobre as consequências de uma aprendizagem demasiado centrada nas emoções, como a que está hoje na moda.
Em Deus Cérebro, a psicóloga Lisa F. Barrett afirma que, contrariando a sua própria expectativa, é possível encontrar evidências de causalidade entre uma aprendizagem emocional e melhor desempenho na escola. E acrescenta: “Se pegarmos em crianças em idade escolar e lhes ensinarmos palavras sobre emoções e conceitos emocionais, são criados novos circuitos no cérebro de maneira a terem mais vocabulário, muitas mais escolhas sobre como interpretar a maneira como são afetadas e guiar as suas ações. E isto, de facto, reflete-se em melhores notas escolares.”
Não são citados estudos que permitam corroborar a relação causal ao nível dos resultados escolares, mas a partir dos acontecimentos dos últimos anos é possível dizer algo sobre os tais circuitos que são criados: uma educação demasiado centrada nas emoções parece tornar os jovens mais suscetíveis, mais egoístas e autocentrados, menos empáticos e sobrevalorizando tudo o que os possa afetar emocionalmente (com as consequências negativas ao nível da saúde mental que são já reconhecidas). Acima de tudo, tende a torná-los menos capazes de fazer aquilo que o neurologista Alexandre Castro Caldas, no mesmo livro, afirma ser fundamental para termos vidas e sociedades saudáveis:
“Precisamos de ter relações sociais. O convívio é essencial, se não convivermos caímos nas nossas convicções. E isso faz com que, a certa altura, sejamos completamente egocêntricos e achemos que a verdade é nossa. Enquanto formos capazes de conviver com os outros e discutir as coisas, conseguimos manter a vitalidade.”
Ou, como diriam os Ornatos Violeta, o monstro precisa é de amigos.
Tom Nichols, em A morte da competência, debruça-se sobre a prevalência emotiva que se verifica nos alunos das universidades norte-americanas: “[M]uitas universidades tornaram-se reféns de alunos que exigem que aquilo que sentem se sobreponha a tudo o resto. Acreditam inequivocamente no direito de fazerem esta exigência porque é assim que têm vivido até ali, numa cultura terapêutica em que todos os pensamentos são ditos e todos os sentimentos são válidos.”
A consequência é a de que os sentimentos passam a ocupar o lugar da verdade:
“Sempre que as emoções se sobrepõem à razão e aos factos, condena-se o ensino ao fracasso. As emoções são uma fortaleza contra a qual a competência nada pode, um fosso de raiva e rancor em que a razão e a sabedoria rapidamente se afundam. E quando os alunos percebem que nada vence as emoções, guardam essa lição para o resto da vida.”
Eurípides já o tinha dito:
“O que é a sabedoria? Ou que dádiva mais bela
dos deuses, aos olhos dos homens,
do que manter a mão segura
sobre a cabeça do inimigo?
O que é belo é sempre estimado.”
4 Que saída?
A solução repetidamente proposta por Ricardo Araújo Pereira – reconhecermos que as palavras não fazem dói-dói – é, na verdade, recusada por Damásio. No seu mais recente livro, Sentir & Saber, afirma:
“[C]ostumamos ignorar o facto de que as situações psicológicas e socioculturais também atuam sobre a maquinaria da homeostasia de tal maneira que também provocam dor ou prazer, mal-estar ou bem-estar. Sempre obediente à lei do menor esforço, a natureza não se deu ao trabalho de criar novos dispositivos para lidar com aquilo que é bom ou mau na nossa psicologia pessoal ou condição social. (…) [A] dor da vergonha social é comparável à de um cancro terminal, a traição pode ser tão dolorosa como uma ferida aberta, e os prazeres resultantes da admiração social, quer queiramos quer não, podem revelar-se orgásticos.”
Isto significaria que as palavras podem mesmo magoar e que teríamos de repensar a noção de dano que John Stuart Mill nos legou na sua maravilhosa obra sobre a liberdade.
Ainda assim, a solução não pode ser a de ficarmos presos aos excessos emocionais e ao seu uso como ferramenta política. Isso torna-nos reféns de uma tirania das emoções que nos impede de promover um diálogo construtivo e chegar a compromissos políticos. Temos de nos esforçar por encontrar um equilíbrio entre razão e emoção, ao mesmo tempo que devemos recuperar dos antigos a sua lição de moderação.