Quem tivesse aterrado há cinco dias em Portugal, e ouvisse as críticas à contratação de Passos Coelho para dar aulas no ISCSP da Universidade de Lisboa (UL), poderia convencer-se que, por cá, se leva muito a sério a qualidade no recrutamento das universidades, assim como o rigor na atribuição de graus académicos. E se se convencesse disso estaria obviamente equivocado.

Poder-se-ia entrar no debate e explicar que ter ex-políticos de relevo a dar aulas numa universidade é uma prática comum no contexto internacional. Ou até esclarecer a ignorância de quem não sabe que o estatuto de catedrático-convidado, que Passos Coelho terá no ISCSP, não equivale a professor catedrático em termos de carreira académica. Mas o ponto não está nesta argumentação. A questão que realmente importa tem raízes mais profundas: a contratação de Passos Coelho nunca poderia ser bem-recebida num sistema universitário alheio ao mérito, alimentado por compadrios e redes de influência. Isto é, um sistema que aclama a endogamia – e que é, portanto, arbitrariamente precário para uns e generoso para outros.

Os dados da endogamia universitária falam por si. Na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (UC), todos os docentes de carreira fizeram o seu doutoramento nessa mesma faculdade. Não é arredondamento, é mesmo 100%. Em 53 professores, não há um único que se tenha formado numa outra instituição de ensino – basicamente, há os “da casa” e quem vem de fora fica à porta. Mas há muitos mais exemplos. Ainda em Coimbra, a universidade portuguesa com níveis mais elevados de endogamia, a Faculdade de Medicina tem uma taxa de 97%. Na de Medicina da Universidade do Porto (UP), a taxa de endogamia é só ligeiramente inferior: 93%. E na Faculdade de Letras da UP, a taxa mantém-se nuns elevados 83%. O que quase parece pouco se se comparar com a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (UL), que tem 96% dos seus 165 docentes de carreira doutorados nessa mesma instituição. De resto, na UL, nada de particularmente diferente: a Faculdade de Medicina tem uma taxa de endogamia de 85% e a Faculdade de Direito quase iguala a marca de Coimbra: em 103 professores, apenas um se formou numa outra instituição, resultando numa taxa de endogamia de 99%.

Todos estes casos são sintomas da endogamia persistente no sistema universitário português: comunidades académicas fechadas sobre si mesmas, viciadas em favorecimentos internos, alheias a ideias novas e oriundas do exterior, e forçosamente menos integradas nas redes internacionais. Olhando para o cenário global das universidades portuguesas da rede pública, 70% dos docentes de carreira formaram-se na instituição onde agora dão aulas. É um valor altíssimo e preocupante. E é só a ponta do icebergue.

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Os dados aqui mencionados, retirados de um relatório da Direcção Geral das Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), não contabilizam os professores convidados e similares – que, ao não serem de carreira, dispensam concurso de acesso, dando origem a (ainda mais) situações de endogamia. É, aliás, essa a conclusão de um estudo sobre o tema, publicado pelo Conselho Nacional de Educação: a legislação “continua a permitir que as instituições recorram à carreira informal dos professores convidados, a qual reforça o recrutamento endogâmico”, para beneficiar os seus protegidos em futuros concursos de vinculação à carreira.

O que quer dizer tudo isto? Que o caminho mais certo para a obtenção de um lugar numa faculdade é a vassalagem académica, tendo as lideranças das faculdades um poder tremendo sobre a carreira (e a vida) dos docentes. Que são estas as regras do jogo, que muitos lamentam mas cumprem porque disso depende a sua progressão profissional. E que quem entrar vindo de fora, por mérito próprio ou melhores contactos, será visto com inveja e tratado como ameaça.

Sim, há um problema nas escolhas que as universidades fazem na contratação dos seus docentes. Mas não, esse problema não está no perfil de experiência e qualificações de Passos Coelho para leccionar Administração Pública no ISCSP – já agora, a unidade da UL com mais baixa taxa de endogamia (59%). O problema está num sistema universitário erigido sobre pequenas teias de influência, lealdades, invejas e redes de poder. Discuta-se isso, que o resto é só ruído.