O primeiro dia de vacinação na Europa foi fascinante pelo que dele podemos aprender sobre a cultura política dos diversos países. Depois de um ano dificílimo, em todos os países – sem excepção –, o momento da primeira vacina revestiu-se de grande simbolismo. Constituiu o início do fim do pesadelo da pandemia. Pelo facto de ter ocorrido simultaneamente, a análise de como as elites políticas escolheram administrar a vacina é-nos reveladora dos padrões de organização social dos diversos países. Os países dividiram-se entre vacinar primeiro os profissionais de saúde ou os utentes de lares. Não me vou pronunciar sobre esta decisão, porque não tenho competência para tal.
Decidi, antes, fazer um exercício comparativo, focando-me em quatro dimensões que nos permitem captar a cultural política dominante em cada país: género da primeira pessoa vacinada, profissão, centro-periferia, e a presença de membros do governo no momento simbólico da primeira vacina. Com a ajuda de vários amigos espalhados pelos vários países, e de algumas horas na internet, consegui comparar os vários países.
- Género: nos países analisados nesta amostra, à excepção de Portugal, todos escolheram uma mulher para ser a primeira pessoa vacinada. Existem já diversos trabalhos académicos que mostram que as mulheres foram especialmente penalizadas durante a crise pandémica que atravessamos, na medida em que, para além das dificuldades inerentes à doença e às pressões profissionais, tiveram ainda de suportar a maior parte do trabalho doméstico num momento em que a esmagadora maioria da população mundial recolhia a casa. Apesar da retórica socialista, Portugal continua, como em tudo, de resto, na cauda da Europa.
- Profissão: em todos os países que decidiram começar pelos profissionais de saúde, em Itália, na Grécia e nos Estados Unidos, as enfermeiras tiveram a primazia no momento da toma da vacina. Nos Estados Unidos, de resto, simbolicamente, a primeira pessoa a receber a vacina foi uma enfermeira Afro-Americana de Nova Iorque. Portugal foi o único país no qual um médico, um homem de meia idade, chefe de serviço e um professor catedrático da Faculdade de Medicina, como as televisões e a senhora Ministra não se cansavam de repetir, foi o primeiro a ser vacinado. A reprodução de estruturas de poder no momento da vacinação é simplesmente fascinante pelo que diz da nossa sociedade.
- Centro-Periferia: a decisão sobre onde fazer a primeira vacinação indica-nos também a distribuição de poder dentro de cada sociedade. Em Portugal, nos Estados Unidos, em Itália e na Grécia, a primeira vacina foi dada em hospitais centrais de grandes cidades, os quais, de resto, apesar de grande pressão durante a pandemia, tiveram à sua disposição uma gama de recursos invejáveis dentro dos respectivos contextos. Pelo contrário, em países como França, Espanha, Reino Unido, Alemanha e Suécia, as primeiras vacinas foram administradas em cidades mais periféricas dos países ou em hospitais de subúrbios mais pobres das grandes cidades, os quais, em geral, atendem populações menos afluentes, com menor educação e com menor capacidade de mobilização política e social.
- Presença no governo durante a vacinação: de forma não surpreendente, Portugal, aqui, é um verdadeiro campeão. Em todos os países, com excepção de França, houve imenso alarido mediático em torno do primeiro vacinado. Será, naturalmente, uma imagem icónica em cada país quando a pandemia for já uma memória longínqua. Todavia, apenas em Portugal houve presença política de um membro do governo central a acompanhar a primeira vacinação. A Ministra da Saúde não fez a coisa por menos: visitou os hospitais de São João, Santo António e os HUC no mesmo dia. Isto, já para não falar dos momentos penosos da ministra a acompanhar a chegada da vacina. A máquina de propaganda socialista está bem e recomenda-se.
Resumindo, apesar da retórica da esquerda inclusiva, e dos idiotas úteis que escrevem nos jornais e nas redes a apoiar o magnífico governo de Costa, ao contrário da maioria dos países com os quais nos gostamos de comparar, o poster boy da vacinação em Portugal foi um Professor Doutor, de meia idade, num hospital central com todas as condições, que passou tão bem para a televisão num domingo de manhã, juntamente com a senhora Ministra, num exercício de propaganda preparado ao milímetro. Seria estranho se fosse uma enfermeira do hospital de Penafiel, o qual entrou em ruptura na segunda vaga, que ganha 1200 euros depois de dar o que tem e o que não tem ao SNS. Covid-19, estamos On.
P.S.: É lamentável o populismo levado ao cúmulo de António Costa e de Marcelo Rebelo de Sousa, ao afirmarem que só serão vacinados “na sua vez”, em Abril ou até mais tarde. Devido às funções que exercem, deveriam ser, obviamente, vacinados de imediato.