Na morte de McCain: “A cidade são os homens e não as muralhas” exorta Nícias os soldados gregos em fuga. O virtuoso Nícias será executado, os seus homens capturados e sujeitos à horrível tortura da pedreira, antes de serem vendidos como escravos.

Assim culmina uma das maiores derrotas de Atenas, narrada na História da Guerra do Peloponeso de Tucídides, uma obra sempre citada a propósito de tudo e de nada.

Lembrei-me dela por ocasião da morte de McCain. Que é, simbólica e ironicamente, uma espécie de morte de um tempo (agora) antigo da política, norte-americana e não só:

Um tempo em que os adversários políticos não eram inimigos, mas apenas adversários políticos. Em que a palavra contava e a verdade era verdadeira e não o resultado de um spin conveniente. Um tempo em que patriotismo era uma palavra nobre, porque ninguém a confundia com sectarismo, ou tribalismo, ou nacionalismo exclusivista.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A morte de McCain e o simultâneo protagonismo de Trump, ou de Salvini, ou de Orban, ou de Maduro, ou de outros cultores de uma ideia da política como antagonismo, desrespeito, em que o forte esmaga o fraco, marcam o momento em que o Mundo volta a ser mais perigoso. Já o era, claro, mas agora à realidade junta-se o simbolismo.

Morreu um homem que, sendo um falcão, respeitava os seus opositores. Que sofreu com coragem tortura. Um homem para quem a verdade contava, a honra contava.

Já repararam quão poucas vezes é hoje evocada a ideia de honra – quão desvalorizada está?

A noção de Honra que levou McCain a rejeitar ser libertado antes dos seus camaradas, de certa forma, morre com ele. Exaltado é agora o vencedor por qualquer meio, o herói que, como disse Trump, não é capturado (intui-se que se referia a si próprio, ele que nem sequer chegou a ser soldado graças a empenhos vários).

E a verdade? Tucídides apresenta com lucidez os factos, objectivos e depurados, aquilo que é para si a realidade – a verdade. “A grande revelação daquela forte, severa, dura factualidade que era instintiva nos Helénicos de antigamente”, escreveu Nietzsche sobre a grande obra (a única obra) de Tucídides.

Já repararam como a verdade deixou de ser importante? Quão desvalorizada está?

Vivemos um tempo de mudança – e não parece ser para melhor. Pela Europa fora, no Mundo, a tendência é de polarização política. Para que alguns, cada vez menos, possam ganhar, muitos, cada vez mais, têm de perder (o jogo é de soma negativa). São em número crescente os que ficam a perder com a nova civilização do digital, da Siri, da diversão portátil e individual.

A síndrome do clã, do tribalismo, do sectarismo, por isso também, impõe-se. Vivemos cada vez mais fechados no casulo do nosso grupo. Para o proteger tudo serve, até a mentira, a que chamamos fake news. Construímos narrativas à nossa medida e à medida da identidade colectiva a que aderimos. E já só escutamos o que convém a essa narrativa, tudo o que a possa contrariar, não sendo mentira, não é por nós tido em conta. Como se não existisse.

Não somos mentirosos, somos convenientes – pelo que nos convém.

E é por isso que construímos muralhas à volta das nossas cidades. Para manter de fora os outros. Não são convenientes para o nosso objectivo.

E contudo a Cidade, escreveu Tucídides, são os homens, não as muralhas.

Nos últimos 50 anos, depois da Segunda Guerra, entre conflitos coloniais e a Guerra Fria, o Ocidente – a Europa em particular, e com ela os seus aliados norte-americanos, a Austrália, o Japão – construiu um sistema internacional baseado na cooperação e na negociação, na integração de políticas, em mercados crescentemente livres; e também, lado bom da moeda boa, na democracia, no respeito pela dignidade individual, nos direitos humanos, no primado da lei, princípios aparentemente imutáveis, irreversíveis.

E de repente, não mais do que de repente – ou pelo menos não muito lentamente – eles reverteram-se. Regimes de esquerda põem em causa o mercado livre, o primado da lei, a moral e a honra, regimes de direita põem em causa o mercado livre, o primado da lei, a moral e a honra. Velhos fantasmas saltam dos esconderijos onde estiveram escondidos nas últimas décadas e vêm de novo assombrar os sonhos dos europeus. Alguns países, poucos, resistem, pelo menos por enquanto (sim, é o caso de Portugal).

O ovo da serpente eclode?

McCain morreu. O caminho que seguimos na Europa, um pouco por todo o Mundo, baseado na xenofobia, no iliberalismo democrático, na rejeição do multilateralismo, onde nos levará?

Essa é a pergunta que interessa: qual o destino desta tendência que parece global, em que a extrema-direita floresce e convence cada vez mais eleitores? Para onde vamos?

Na verdade não sei. Suspeito que poucos sabem. E tal como escreveu Lewis Carroll, quando não sabemos o destino, todos os caminhos servem.

Mesmo os que rejeitam a verdade. Mesmo os que não assentam na Honra. Mesmo os que se baseiam no medo.