O chamado caso Rosalino terminou como seria expectável numa democracia madura: a pressão da opinião pública fez com que a nomeação de Hélder Rosalino para a Secretaria-Geral do governo fosse abortada. Mesmo assim, neste início de um novo ano, acho que vale a pena rever a matéria dada e falar de algumas ilações políticas sobre uma cultura política que permanece inalterada ano após ano. Vamos aos factos, que são públicos e notórios.

Hélder Rosalino estudou Gestão no ISCTE e fez mais umas quantas especializações em universidades Portuguesas. Antes de 2011, era quadro do Banco de Portugal, no qual auferia um bom salário, sendo devidamente recompensado pelas suas funções. Quando Vítor Gaspar foi nomeado para Ministro das Finanças por Passos Coelho em 2011, impressionado com a qualidade técnica de Rosalino, convidou-o a juntar-se ao seu ministério, nomeando-o Secretário de Estado da Administração Pública.

Vítor Gaspar demitiu-se do governo no Verão no 2013. Nessa altura, Maria Luís Albuquerque, que havido sido par de Rosalino como secretária de estado de Gaspar, subiu a Ministra das Finanças. No ano seguinte, Albuquerque fez a nomeação política de Rosalino para a administração do Banco de Portugal, substituindo Silveira Godinho e Teodora Cardoso. À época, Rosalino saiu do governo para um generoso salário de cerca de 13 mil Euros mensais, de acordo com a tabela do Banco de Portugal.

De acordo com o número 33 da Lei Orgânica do Banco de Portugal, o cargo para o qual Rosalino foi nomeado em 2014 por Albuquerque tinha uma duração de cinco anos, com a possibilidade de uma única renovação por igual período. Em 2019, Centeno, amigo de longa data de Rosalino ,então ainda Ministro das Finanças, cuja passagem deste cargo para o Banco causou grande comoção pública, decidiu-se pela renovação do mandato de Rosalino como administrador, mantendo-o no cargo. No final dos 10 anos como administrador, seria expectável que Rosalino voltasse à sua posição como quadro do Banco de Portugal. No entanto, contrariando o espírito da lei, que exige um limite de mandatos a administradores e governador, para evitar a perpetuação no cargo e fomentar o espírito de independência exigido à instituição, Centeno decidiu que Rosalino dever-se-ia manter com o mesmíssimo salário que auferia enquanto administrador. Não podendo continuar a ocupar a posição, foi nomeado consultor. Apesar do salário principesco, não é claro, pelo menos nas informações públicas e oficiais, quais as suas funções exactas e qual a utilidade que tinha para o Banco de Portugal.

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Vamos agora ao outro lado da história. Em Julho de 2024, o governo de Montenegro regulamentou o funcionamento orgânico da nova Secretaria-Geral do Governo, um novo órgão cujo objectivo é maximizar os benefícios da concentração física do governo na João XXI. No decreto-lei 43-B/2024, a remuneração do Secretário-Geral do governo é claríssima: corresponde ao nível 80 da Tabela Única de Remuneração, cerca de 4600 euros por mês, mais as normais despesas de representação.

Nas últimas semanas, Montenegro decidiu convidar Rosalino para ocupar este lugar. No entanto, Rosalino não queria perder a sinecura que tinha no Banco de Portugal, tendo dito a Montenegro que apenas aceitaria caso pudesse manter o seu salário de origem. Montenegro acedeu. A 26 de Dezembro, o governo aprovou um decreto-lei feita à medida de Rosalino para resolver o problema. Alterando a redacção da legislação de Julho, agora, o governo abriu a possibilidade aos futuros membros da Secretaria-Geral de manterem um salário equivalente ao que auferiam até então.

Em seguida, o governo pediu ao Banco de Portugal que suportasse o pagamento do salário de Rosalindo, chegando mesmo ao ponto de explicar, no passado sábado, que haveria uma poupança com esta solução: o cargo de Rosalindo extinguir-se-ia no Banco de Portugal e o governo não teria de suportar o custo do seu trabalho na João XXI. A correr em pista própria para Belém, Centeno recusou este arranjo, aproveitando para dar sinais de independência.

Na última segunda-feira, a pressão da opinião pública foi demasiado forte e ficámos a saber que Rosalino já não será nomeado como Secretário-Geral do governo a partir de Janeiro de 2025. A capacidade de a opinião pública conseguir forças as fazer as instituições a mudarem de rumo é um sinal positivo. Contudo, este caso encerra também algumas lições sobre como não fazer política ou como há coisas que acontecem sempre, independentemente de quem esteja no poder.

O caso de Rosalino é um exemplo gritante de portas giratórias e de tachos políticos contra os quais o PSD tanto clamou durante os mandatos de António Costa. Notem que tudo o que sucedeu nestas últimas semanas poderia ter ocorrido num governo do PS. No entanto, se o PS estivesse no poder, a direita em peso utilizaria as redes sociais e os jornais para clamar, com razão, contra a pouca-vergonha Socialista e o polvo que tomou conta do Estado. Agora é a vez do PS e da esquerda fazerem esse papel. Infelizmente, em Portugal, a ideia de accountability funciona de forma facciosa e com base em claques. As claques de ambos os lados parecem só querer tirar conclusões políticas quando o outro lado utiliza o aparelho de Estado como se fosse propriedade sua. Quando o seu lado faz manobras para conseguir beneficiar os seus boys e girls, está tudo, naturalmente, dentro do domínio da competência técnica e dos mais elevados padrões éticos.

Mais, as reacções à queda de Rosalino são muitíssimo curiosas. Em todas as televisões e jornais o foco foi, quase exclusivamente, no salário que este iria ganhar. Parece estar na moda sinalizar a virtude pessoal para combater o Chega, dizendo que os políticos devem ganhar muito mais. Sou contra a ideia miserabilista que os políticos devem ser mal pagos e, de resto, acho que seria da maior justiça aumentar os ordenados dos governantes. No entanto, é preciso mantermos o sentido das proporções. Para termos uma noção da ordem de grandeza que estamos a falar, Jay Powell, governador da Reserva Federal Americana, ganha 190 mil dólares por ano enquanto Rosalino ganharia cerca de 222 mil euros por ano. Será que Portugal é um país mais rico do que os Estados Unidos e temos quadros mais qualificados do que aquele país? Serão as responsabilidades ser presidir ao maior e mais importante banco central do mundo menores do que coordenar o governo do Dr. Montenegro? Tenho sérias dúvidas.

O mais interessante na reacção à queda de Rosalino foi aquilo que não foi discutido. Os comentadores passaram olimpicamente ao lado da violação claríssima dos mais básicos princípios da ética republicana com leis feitas à medida, portas giratórias entre o regulador e o governo, a ausência de concursos públicos. Em minha opinião, tudo isto é muitíssimo mais grave e consequente do que o salário. No entanto, isso não interessa a ninguém. Ontem foi o PS, hoje é o PSD, amanhã será novamente o PS e assim sucessivamente. Feliz Ano Novo!