Em década e meia já tivemos uma crise de origem financeira, uma gerada pela pandemia, a provocar uma queda da procura, e agora uma terceira com a guerra, a reduzir a oferta quando ainda não tínhamos recuperado da anterior. Há hoje adolescentes e jovens que não ouviram falar de outra coisa se não em crise. Três crises com origens diferentes, como se alguém quisesse que, num curto período de tempo, experimentássemos os variados choques a que podemos estar sujeitos.
Preços a disparar, com perda de poder de compra a afectar, de novo, e de forma brutal as famílias com rendimentos que quase não chegam para as despesas é aquilo que começamos a viver por estes dias. Os primeiros impactos na energia e nos combustíveis já afectam seriamente as empresas que têm, nos seus custos, um peso elevado dos transportes, do gás e da electricidade. A seguir chegarão todos os outros, sendo difícil perceber que produtos não são afectados pela invasão da Ucrânia pela Rússia.
Petróleo, gás, carvão, minerais, fertilizantes e cereais são os produtos que estes dois países em conjunto vendem, com significado, para o mundo. E, como disse o analista de um banco, enquanto a Ucrânia é “inacessível”, a Rússia é “intocável” – as empresas que de lá não saíram e se atrevem a fazer negócios arriscam-se ao “cancelamento” social.
A Rússia é o maior exportador mundial de gás natural, é o segundo maior exportador de petróleo e o terceiro de carvão. E garante (ou garantia) 26% das compras de petróleo da União Europeia e 40% de gás, neste caso com especial relevo para os países da Europa Central, incluindo a Alemanha.
O petróleo é igualmente muito importante por causa dos seus derivados, que entram na produção de mais de seis mil produtos (ver, por exemplo, aqui), entre os quais detergentes, cosméticos e até painéis solares.
De acordo com dados da FAO, a Rússia e a Ucrânia, em conjunto, garantem metade da oferta mundial de sementes de girassol, 19% de cevada e 14% de trigo. Além da alimentação humana, os cereais são matéria-prima para as rações.
E a Rússia é igualmente o maior produtor mundial de ingredientes para fertilizantes.
Por esta descrição, ficamos a perceber a dimensão do choque a que estamos sujeitos. É difícil identificar um produto que esteja imune a esta guerra. Todos os preços vão aumentar. E esta é uma inflação que reúne condições para provocar dificuldades a muitas empresas, algumas ainda pouco recuperadas do choque da pandemia.
Inflação com abrandamento da actividade económica é o mínimo que podemos esperar. Porque não está fora do horizonte a possibilidade de pelo menos alguns países europeus experimentarem uma quebra da produção, uma recessão.
Ajuda, é a palavra de ordem destas alturas, reforçada pelo apoio que os governos nos ofereceram durante a crise da pandemia. O problema é que agora os governos podem ajudar muito pouco, como aliás se percebeu pelos apoios limitados e cuidadosamente desenhados que foram anunciados pelo ministro da Economia Pedro Siza Vieira. Moderar os efeitos da subida dos combustíveis para as famílias, os transportes e as outras empresas; dar algum apoio para reduzir a factura da energia; flexibilizar o pagamento de impostos; preparar uma prestação social para as famílias mais vulneráveis e abrir uma linha de crédito com garantia de Estado a 70% foram as medidas anunciadas. Mais poderão chegar, como o regresso dos apoios ao “lay off” ou a descida temporária do IVA, quando a União Europeia o permitir, ou ainda apoios directos a empresas, quando forem suspensas as regras europeias relativas às ajudas do Estado. Está ainda o Governo a tentar garantir fontes alternativas para os fornecimentos que vinham da Rússia para evitar o racionamento, como já está a acontecer com o óleo de girassol em alguns supermercados.
Claro que os governos poderiam ir ainda mais longe. A subida muito rápida e significativa dos preços vai permitir ao Estado arrecadar muito mais IVA apenas por esse efeito, aquilo que podemos classificar como “ganhos trazidos pelo vento”, enquanto os seus custos registam um aumento mais limitado – as despesas com pessoal, por exemplo, não vão subir na mesma proporção. Tal como fizeram nos combustíveis, em que o ISP desce para eliminar o ganho adicional de IVA gerado pela subida do preço, o Governo podia também aplicar essa regra a, pelo menos, alguns produtos, descendo os impostos.
Mas todos vamos ter de aceitar que o Governo, como boa parte dos governos europeus, estão bastante limitados na capacidade de anular esta avassaladora subida de preços.
Além da dimensão do choque, impossível de anular, os Estados europeus estão hoje mais endividados do que estavam antes da pandemia e vão ter de gastar mais dinheiro na defesa. E, naquela escolha clássica que se estuda em economia, se há mais canhões, há menos manteiga. Menos dinheiro sobra para apoiar as famílias e as empresas.
Estamos todos mais pobres e, neste momento, os governos terão forçosamente de concentrar os seus recursos a apoiar as famílias mais vulneráveis e as empresas que são realmente críticas para o país ou para uma região. Não vai haver dinheiro para tudo. A generosidade que sentíamos no tempo da pandemia é inviável nesta crise muito mais grave. Esperando todos que a guerra que vivemos se limite ao mundo da economia.