Dezasseis anos depois do primeiro alargamento a Leste, hoje, o projecto europeu debate-se com um dos primeiros danos colaterais da sua apressada expansão pela Europa oriental. Polónia e Hungria, com as suas violações cada vez mais grosseiras do equilíbrio de poderes, do Estado de Direito, da liberdade de imprensa e dos direitos humanos, são hoje dois Estados-membros que devem fazer soar os alarmes pela Europa fora por razões preocupantes.

Comecemos por analisar sobre que alicerces se apoiam as sociedades de Leste em termos genéricos, e qual foi a realidade histórica que foi definindo a sua base civilizacional até aos dias de hoje.

A faixa territorial que se estende desde a actual Estónia até à actual Bulgária, onde se aglomeram praticamente todos os países que aderiram à UE desde 2004 – com excepção para Chipre e para Malta – aglomera também um conjunto de povos cujas características civilizacionais diferem perceptivelmente das dos povos da Europa ocidental. São povos que, ao contrário dos ocidentais, viveram durante séculos em constante imprevisibilidade, opressão e instabilidade, em reinos que se erguiam, desmoronavam e fundiam repetidamente, que eram constantemente ocupados, remexidos e ajustados pelos impérios circundantes, foram, muitos desses povos, tratados durante eras como povos de segunda, subjugados por déspotas que se perpetuavam dinasticamente ou se depunham por outros déspotas por via da violência. Esta situação ziguezagueante de instabilidade, opressão e beligerância constantes durou até 1991 com o colapso do bloco soviético, o que deixou marcas e traumas profundos nestas comunidades, sendo um deles, um problema de confiança. É difícil a estes povos, no seu âmago, o desenvolvimento de relações de confiança para com os seus circundantes, diga-se, legitimamente, o que faz com que estas sociedades sejam sobejamente mais fechadas e circunspectas no que diz respeito a depositar confiança no próximo. O comummente apelidado, isolacionismo.

Por oposição, os povos europeus do Ocidente – muito influenciados pela herança universalista da matriz judaico-cristã e pela herança greco-romana de unidade e expansão dos valores comuns da lei, da ordem e do progresso – são, na sua génese, povos cujo espírito não se sustenta na relutância ao “outro” ou numa identidade fechada, que unicamente se relaciona consigo mesma, alimentando-se apenas da sua própria história, antes pelo contrário, são sociedades que mostram abertura e curiosidade face ao distinto, racionalização das diferenças e ânsia pela descoberta, como historicamente se pode comprovar pelos périplos expansionistas que deram forma aos diversos impérios euro-mundistas, como o português, o espanhol ou o britânico para elencar alguns. Périplos expansionistas esses que pouco diferem, na sua essência, da expansão imperial grega de Alexandre o Grande e da subsequente expansão imperial romana, que foram, para os seus líderes, um mero instrumento ou mecanismo de disseminação das suas ideias de sociedade. O mesmo que aconteceu com o surgimento dos impérios euro-mundistas noutro tempo e noutra escala.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Transportando-nos agora para o presente, são fáceis de observar essas diferenças culturais. No que diz respeito ao modo de vida, os povos de Leste são visivelmente mais conservadores em determinadas questões relacionadas com os valores familiares, os costumes tradicionais ou a auto-determinação sexual, por exemplo. E no que refere ao relacionamento com povos estrangeiros apresentam normalmente uma postura defensiva e de desconfiança, mostrando um evidente preconceito, veja-se, por exemplo, quais foram os países que mais resistência ofereceram durante a crise dos refugiados e como estes os tratavam à sua passagem, apresentando comportamentos semelhantes para com estrangeiros de determinados aspectos étnicos, como foi o caso de um estudante português espancado na Polónia em 2016 por ter sido, por engano, entendido como sírio.

Todos estes comportamentos são, de um modo geral, entendidos na Europa ocidental como anti-progressistas, insensíveis e, em última instância, desumanos. Salvaguardando também, algumas excepções contraditórias que, minoritariamente, existirão de ambas as partes.

Este panorama cria uma clara cisão entre Leste e Ocidente dentro da UE, onde dois blocos partilham de espíritos diferentes em matérias significativas. Matérias significativas essas que, quando trazidas à mesa de discussão gerarão uma divisão que transparece ao nível territorial e que está intimamente ligada com diferenças nos valores culturais. Valores culturais diferentes esses que, hoje, começam a moldar regimes que colocam em causa os pressupostos fundacionais da União Europeia, desconsiderando a democracia, pervertendo o Estado de Direito e sufocando a liberdade de expressão dentro da própria União Europeia, como que um Cavalo de Troia que sorrateira e dissimuladamente entra na “fortaleza” e tarde ou cedo a ataca por dentro.

O alargamento a Leste era visto como que uma espécie de brinde soviético, um conjunto de países que se tinham visto recentemente livres da morta URSS – o seu “ex-senhorio” opressor, que os dominou durante décadas pela força – e que podiam ser gratuitamente “adquiridos” pela esfera ocidental dentro da UE, o seu próprio projecto de sociedade. À data, a vontade ocidental de absorver aqueles países era tanta, e a oportunidade geopolítica era tão imprevisível – não se sabia em quantos anos a Rússia se recomporia economicamente do colapso soviético e viria novamente em busca destes territórios – que a própria UE fechou os olhos ao cumprimento de determinados critérios de entrada para este bloco de países. Coisa que não fez, por exemplo, com Portugal no seu processo de entrada entre 1977 e 1986. Por outro lado, estes países, consumidos pelo pânico de ver a Rússia recompor-se e voltar em busca dos mesmos, tinham todo o interesse em acelerar o processo e encontrar um abrigo suficientemente forte para suster os impulsos imperialistas de Moscovo, e suficientemente moderado para que não os oprimissem pela força novamente. A União Europeia era, para estes povos, o melhor dos dois mundos.

À data, o bloco ocidental provavelmente considerou a hipótese de as diferenças entre Ocidente e Leste poderem vir a causar algum tipo de transtorno, porém, como bons paternalistas que somos no Ocidente, acreditámos sinceramente que a nossa acção civilizadora iria moldar os povos de Leste um pouco mais à nossa imagem e que a utópica harmonia europeia seria alcançada mais cedo ou mais tarde.

Aquilo a que assistimos hoje em alguns países do bloco de Leste, como a Polónia ou a Hungria (para com a questão dos refugiados ou da comunidade LGBT) é, no fundo, ao emergir da verdadeira essência de determinadas nações, que após séculos de opressão e subjugação, têm finalmente a oportunidade de imprimir livremente a sua verdadeira identidade nas suas sociedades, identidade essa que entra em conflito com a identidade ocidental, mais tolerante. E tudo isto se intensifica quando a própria UE serviu nos últimos 16 anos de incubadora económica destes países, dando-lhes o fôlego necessário para que estes – juntamente com o sentimento de segurança de pertencer a um grande bloco democrático – possam expressar pujantemente o seu verdadeiro espírito.

Face a este panorama de divisão interna, a UE vê-se obrigada a tomar decisões fundamentais que vão determinar o seu futuro e/ou o futuro da sua própria existência.

Pode a UE aplicar as devidas sanções, de forma contundente, aos países incumpridores dos critérios de pertença ao projecto, na tentativa de os condicionar no sentido pretendido? Esta poderá ser uma medida que crie ainda mais divisão e discórdia entre blocos, no sentido em que, possa o bloco de Leste (ou parte) abandonar o projecto europeu e criar a sua própria união, o que poderia ferir de morte a própria UE, tal como quando Napoleão Bonaparte criou a Confederação do Reno, que matou em definitivo o moribundo Sacro Império Romano-Germânico em 1806. Sendo que, neste caso, de uma cisão europeia, esse Napoleão seria provavelmente russo, o antigo “senhorio” opressor, com toda a carga de ironia que a situação transportaria.

Pode a UE excluir do projecto um ou outro Estado problemático, mantendo os restantes, criando assim, uma barreira “sanitária” entre as nações transgressoras dos valores fundacionais da União? Pode ser difícil, do ponto de vista dos jogos de poder, caso algum desses Estados já tenha alcançado uma posição económica de relevo ao nível europeu, como pode ser o caso da Polónia dentro de algumas décadas.

De entre estes e alguns outros cenários, existe uma grande probabilidade de que a solução do mesmo surja no rescaldo do conflito interno que as democracias ocidentais hoje travam contra o iliberalismo e a pós-verdade, e que a (esperemos!) possível derrota destes dois últimos, possa de facto harmonizar a coexistência entre dois blocos de espíritos notoriamente distintos mas que, porém, ambos europeus.