Nunca um estadista tinha feito tanto pela União Europeia nos últimos 30 anos como Vladimir Putin, o que confirma a velha norma “a quem procura unir os desunidos, encontre-lhes um inimigo comum”.

Com esta agressão descarada, baixa e de motivações ignominiosamente manhosas investida contra a Ucrânia, um país substantivamente mais fraco militar e economicamente – mas não mais fraco na audácia e no heroísmo – Putin caiu na armadilha artilhada pela sua própria ambição imperial, acordou um monstro que este julgava morto ou assustadiço.

Até ao dia 24 de Fevereiro de 2022, a NATO estava cristalizada pela apatia e em plena crise existencial, motivada pelos desastrosos anos de Trump que minaram totalmente a confiança transatlântica ao nível diplomático, enquanto que a União Europeia estava a voltar a deixar-se envolver pela aborrecidíssima monotonia das habituais discussões suporíficamente entorpecedoras sobre a dívida, política orçamental, política fiscal, política monetária, e todos os restantes assuntos mais tecnocratas e menos apaixonantes que podemos imaginar.

Após o dia 24 de Fevereiro de 2022 tudo ficou diferente.

A NATO está hoje mais revigorada do que nunca, com este acto de agressão que mais do que justifica e legitima a sua existência, os líderes europeus ultrapassaram esta espécie de desgosto amoroso e desconfiança para com a Casa Branca deixado pelo legado de Trump, e o que vemos é uma NATO empenhada em mostrar os seus músculos bem maiores que os de Moscovo e fazer Putin endireitar a espinha, accionando pela primeira vez na sua existência, a força de reacção e resposta rápida da aliança, reforçando significativamente o aparato militar nas fronteiras de leste.

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A União Europeia, por sua vez, também nunca esteve tão unida e com o seu espírito tão no auge das suas energias utópicas, pois encontrou aqui o seu ponto de oposição legitimador da sua existência. O regime russo é, neste momento, para o resto da Europa, o mesmo que o Império Persa foi para as cidades Estado gregas, o inimigo que vem ameaçar a sua liberdade e o seu modo de vida e que faz com que Esparta, Atenas, Tebas, Corinto e Delfos ponham fim às guerras entre si e se unam contra a invasão do tirânico Império Persa.

Foi preciso a Rússia levar a cabo uma agressão no coração da Europa para que aqueles que tinham por hábito defendê-la se colocassem finalmente à parte de Moscovo. Falo evidentemente da Alemanha, que mantinha desde há décadas uma perturbadora relação de amizade tóxica e complacente com o regime russo, onde relativizaram sucessivamente, durante anos, a situação da guerra da Geórgia e da guerra no Donbass ucraniano, pondo travões às intenções ocidentais de intensificar as sanções económicas à Rússia. Hoje, essa Alemanha aparentemente já entendeu de que calibre moral é feito o regime russo. Devagar mas progressivamente, a Alemanha vai cedendo a aceitar as sanções mais fortes, rasgando o acordo Nord Stream 2 que lhes permitiria aceder a gás russo mais barato, e acedendo ao bloqueio do sistema SWIFT, que terá um significativo impacto na banca alemã, que é credora em larga escala de clientes em território russo. Por fim, e de extrema importância, Putin consegue também entrar na história por, pela primeira vez após o trauma da 2ª Guerra Mundial, a Alemanha decidir mais do que duplicar o seu investimento nas forças armadas, passando de 40 mil milhões anuais para 100 mil milhões anuais, enviando uma mensagem clara a Moscovo, de que a quarta maior economia do mundo decidiu, 90 anos depois do último rearmamento, fazê-lo novamente.

Devo dizer que Vladimir Putin, neste momento, está encurralado numa decisão que tomou em que ambos os desfechos possíveis o prejudicarão fatalmente. Putin, um mestre do calculismo, aparenta ter atingido o limite das suas capacidades ao não conseguir prever as consequências que está a enfrentar. É apanágio dos ditadores que governam durante décadas que, em determinado momento, se deixem embriagar pelo veneno do poder e tomem decisões delirantes no auge de um estado de paranóia à medida que deixam de ouvir os seus conselheiros, ficando cada vez mais desconectados da realidade, passando muito tempo sozinhos com os seus pensamentos e paranóias, desconfiando até da sua própria sombra.

No estado em que estas sanções vão deixar a Rússia, serão precisas décadas para que esta recupere economicamente, mas sobretudo, para que esta recupere a confiança dos mercados. Temo que os russos pagarão o resto das suas vidas por esta decisão.

Sinto que estaremos a chegar ao final da era Putin, todavia, não acredito que estaremos a chegar ao final do regime russo nos seus moldes autocráticos. Aparenta haver um desconforto grande, não só da parte do povo russo, mas também da parte da elite, ambos irão sofrer de forma torturante durante anos. Putin poderia sobreviver com o descontentamento do povo, esse é-lhe facilmente reversível pela via da propaganda, mas o mesmo não acontece quanto às elites, e temo que essas não esquecerão e começarão a exercer a sua pressão para um revigorar do regime, com uma nova liderança e um novo modo de actuar.

Tudo se complicará quando começar a haver desordem e manifestações violentas nas ruas, seja por via das consequências económicas, seja por via das consequências da guerra, quando os russos começarem a ver chegar ininterruptamente os caixões dos seus filhos.

Não tenho por crer que Putin mantenha a confiança do seu povo, das suas elites, ou dos seus generais.

Essa é, na verdade, a maior esperança para nos salvar de uma guerra de desgaste, ou de um possível conflito mundial com consequências calamitosas, a oposição a Putin dentro da própria Rússia, na mobilização popular e na mobilização das elites, e nas suas possibilidades de exercer pressão interna, mesmo que tal as possa colocar atrás das grades. O povo russo já demonstrou que a amplitude da sua coragem se estende bem para lá do temor de ser capturado pelo Estado opressor.

As dimensões desta guerra são várias e difusas, e nós já entrámos nela, mesmo sem termos disparado um único tiro, e iremos pagar o preço, viveremos em esforço de guerra nos tempos que se seguirem, não sabemos se meses, se anos, porque esta guerra também é nossa, não se trata, nem nunca se tratou, apenas de uma maníaca obstinação de Putin com o reerguer de um império, trata-se de uma maníaca obstinação de Putin com a mentecapta imposição do seu regime tirânico a povos que escolheram viver em liberdade e em democracia, cruzada essa à qual temos forçosamente que fazer frente com toda a impetuosidade, com toda a firmeza e com toda a violência, porque nunca nenhum tirano obcecado e louco na história tinha planos para parar com a imposição do seu regime. Putin não pode ganhar, não pode respirar, não pode ser relativizado como Hitler foi por Ingleses e Franceses em 1938, na Conferência de Munique, para a ocupação dos Sudetas na Checoeslováquia em prol de uma “política de apaziguamento” para “evitar uma nova guerra na Europa”, pois não evitou, Hitler quis mais e não parou, e só depois de entrar Polónia a dentro é que Churchill na Câmara dos Comuns diz “basta, com Hitler é guerra e é já”. Este sabia que a cruzada não estava planeada para ter um fim, tal como a de Putin. Depois da Ucrânia será a Moldávia, depois da Moldávia será a Geórgia e o Azerbaijão, depois um corredor entre a Bielorrússia e Kaliningrado, e em todos os momentos tentaremos dizer a nós próprios que ele vai parar por ali, que já não partirá para mais nenhuma agressão, mais nenhuma exigência, o que nunca será verdade. Que virá a seguir? Finlândia? Suécia? Ou o sentimento de impunidade atirará este homem para confrontações delirantes com países da NATO? Estónia, Letónia, Lituânia…

A guerra está aí, e nós estamos nela quer queiramos quer não, quer concordemos quer não, e as guerras ou se ganham ou se perdem, não há meio termo. Mais de que uma guerra entre Rússia e Ucrânia, isto é uma guerra entre liberdade e tirania, entre ocidente democrático e leste autocrático, é o nosso modo de vida que está a ser ameaçado, não tenhamos dúvidas disso.

Putin serviu para nos unir e para nos fazer reflectir acerca do que é que nós ocidentais valorizamos acima de qualquer divergência interna, a nossa liberdade. Por ela, suspendemos os nossos diferendos, por ela, pegamos nas armas, por ela, lutamos juntos e, por ela, damos a vida.