Uma pessoa pode gostar mais ou menos do PS, concordar mais ou menos com as políticas, os métodos, as responsabilidades no atraso do país nos últimos 30 anos, mas uma coisa é certa: não há partido com amizades mais bonitas. Noutros, haverá amigos, camaradas, lealdades, animosidades, gente simplesmente indiferente e muitas traições – haverá tudo, mas mostrem-me um amigo na São Caetano à Lapa ou na Soeiro Pereira Gomes com a qualidade de um Carlos Santos Silva, um. Que empreste milhões de euros sem fazer a menor ideia de quando ou como o amigo lhe poderá pagar, ceda apartamentos em Paris, casas para as nossas ex-mulheres ou ex-maridos, ligue, vá buscar, vá trazer – tudo. E, no entanto, pensam que é caso isolado no Largo do Rato? Nada disso. Quando pensávamos que não podia haver amizade mais generosa do que a de Santos Silva e José Sócrates, eis que António Costa e Diogo Lacerda Machado elevam os níveis de camaradagem para as nuvens.
Sim. Recordar-se-á de Lacerda Machado como o senhor que representou o Estado português na recompra da TAP em 2016, sem qualquer mandato oficial para isso, simplesmente por ser “amigo” do primeiro-ministro, como o próprio então explicou. Um país é representado pelos respectivos símbolos nacionais, por Presidentes, ministros, secretários de Estado, embaixadores; até por desportistas seleccionados para esse fim envergando as cores da bandeira; mas, naquele dia, Portugal deu mais uma originalidade ao mundo e passou também a poder fazer-se representar pelos compinchas. Há lá coisa mais bonita. Mesmo que nunca se tivessem submetido ao sufrágio popular ou a nação tivesse como lhes pedir contas. Felizmente, o caso saltou para a imprensa antes que Costa começasse a pedir também à tia que representasse Portugal no próximo Conselho Europeu, ao filho que fosse desenrascar uma reunião da NATO, à vizinha de cima que recebesse o próximo chefe de Estado em visita oficial. Lá pôs por escrito o contrato com Lacerda, arranjou-lhe um ordenado “simbólico” e, no fim, quando o negócio ficou feito, um lugar de administrador na nova TAP público-privada. Se não é de amigo.
Agora, Lacerda volta às notícias porque, dizem os jornalistas deontologicamente obrigados a não se rir, poderá vir a liderar um “consórcio de empresários” interessado na reprivatização da TAP.
Tudo isto é fascinante por várias razões. Primeiro, porque, enquanto “empresário”, não se conhece outra ideia de negócio a Lacerda Machado que não precisamente esta: ser amigo do primeiro-ministro. Depois, porque o mesmo homem que comandou o processo de reversão da privatização para, assim, manter nas mãos do Estado uma empresa que Costa e o PS definiram como “absolutamente estratégica”, poderá, agora, liderar o grupo que a vai tirar das mãos desse mesmo Estado. E é fascinante, finalmente, porque corremos o sério risco de ver um chefe de governo democrático que nos fez injectar quatro mil milhões de euros numa empresa, acabar a entregá-la ao seu melhor amigo.
Certo. Mas não é crime ser-se amigo do primeiro-ministro – e Lacerda até tem experiência no negócio da aviação.
Tem. Foi o consultor que liderou o consórcio formado pela TAP e Stanley Ho na compra da VEM, em 2006, uma espécie de pecado original da queda em desgraça da companhia aérea nacional. Estávamos em pleno início da pujante era Sócrates, de cujo governo Costa era o número dois. A VEM – Varig Engenharia e Manutenção, então rebaptizada TAP Manutenção e Engenharia, revelar-se-ia a aplicação mais acertada alguma vez ocorrida da expressão “não VEM que não TEM”: uma empresa falida, onde a TAP enterraria quase mil milhões de euros (Pedro Nuno Santos dixit) em sucessivos prejuízos ao longo dos 15 anos seguintes, até ser finalmente liquidada no ano passado, depois de oferecida a companhias do mundo inteiro e consecutivamente recusada.
Mas Lacerda, ainda em Maio último, na Comissão de Economia, classificou o negócio como “o melhor investimento da TAP em 50 anos”. Um negócio que, logo à época, causou estranheza por ter avançado sem o aval do Ministério das Finanças (esse que agora controla até quantas compressas vão para cada hospital). Um negócio tão bom e tão claro nos seus trâmites que levaria o antigo CEO da TAP Fernando Pinto a ser constituído arguido por gestão danosa. O mesmo Fernando Pinto-agora-consultor a quem Lacerda Machado-agora-administrador pagava até há pouco 1,6 milhões de euros por serviços de aconselhamento. (Porque isto dos consultores, já se sabe, são piores do que bonecas russas: têm sempre mais um lá dentro.)
E, no entanto, seríamos talvez injustos se resumíssemos a estes episódios a carreira de Lacerda Machado. Afinal, ele até já foi realmente governante, daqueles que tomam mesmo posse e juram por sua honra desempenhar fielmente as funções de que ficam investidos e defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa: fê-lo entre 1999 e 2002, na qualidade de secretário de Estado da Justiça, quando por coincidência era ministro da tutela o senhor António Costa. Daí, saiu para o escritório de advogados de José António Pinto Ribeiro, que viria a ser ministro da Cultura de Sócrates. E depois foi muito mais coisas, como Presidente da Comissão e dos Júris dos Concursos Públicos para a aquisição e aluguer pelo Estado de aviões e helicópteros para combate a incêndios e missões de protecção civil, era então ministro da Administração Interna o doutor António Costa.
Agora, Lacerda poderá vir a ser sócio de Gérman Efromovich, o empresário que já tentou comprar a TAP em 2012 e 2015, alturas em que foi visto pela esquerda como pouco menos do que o demónio, e que, em 2020, foi detido pela justiça brasileira, acusado de corrupção e lavagem de dinheiro no caso Lava-Jato e, mais tarde, absolvido.
Mas não queremos crer. Já é suficientemente embaraçoso que António Costa e o PS tenham precisado de oito anos para perceber que, afinal, a direita tinha razão quando privatizou a TAP. Nem uma amizade tão antiga poderia explicar onde estaria a meter a credibilidade do país ou a confiança dos cidadãos se – depois de ter revertido um negócio feito em nome do Estado português por razões alegadamente ideológicas, ter injectado nele mais dinheiro do que em todas as outras empresas nacionais juntas no pós-Covid e deixado o país arrastar-se num espectáculo mediático deprimente, entre nomeações e demissões milionárias, agressões em ministérios e intervenções do SIS – o primeiro-ministro fosse agora entregar a TAP ao seu padrinho de casamento.
“Anda comigo ver os aviões”, diz uma conhecida cantiga da pop nacional. Poderiam cantá-la em dueto, Costa e Lacerda. “E enterrar quatro mil milhões”. O que é isso entre amigos?