Aqui há uns poucos anos (devia andar pelos cinquenta), depois de ir nadar um bocado na piscina, fui para uma esplanada ler um livro e beber um whisky. Às tantas, levantei os olhos para ver um casal muito jovem que, comicamente, e rindo-se, atravessava a rua, com passos para trás e para a frente, provocando grande confusão entre os carros. Devo-me ter sorrido, lembrando-me da juventude e de coisas lindas assim (tem-me acontecido). Sorri-me de certeza porque uma menina amiga do casal, e muito popular, sentada a uma distância de três mesas da minha, lhes gritou: “Olhem a figura que estão a fazer! Até o velhote ali se está a rir!”. Só não digo que engoli em seco porque o copo contendo o dourado corpo de atracção molecular fraca saltou, num instante, quase sem eu reparar, para os meus lábios.

Mas, mais humilhação, menos humilhação, a vida, uma espécie de recitação do “Poema em linha recta” de Álvaro de Campos, lá vai seguindo o seu curso. “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. / Todos os meus amigos foram campeões em tudo”. Enquanto eu “que, quando a hora do soco surgiu, / me tenho agachado para fora da possibilidade do soco”, outros não. “Toda a gente que eu conheço e que fala comigo / nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho, / nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…”

Lembrei-me compreensivelmente desta tristeza da condição humana – pelo menos da minha – exactamente por causa de um “Apelo para resgatar a PT” assinado por vários príncipes que não fugiram nunca para fora da possibilidade do soco e que certamente, como também diz o poema, jamais foram cómicos às criadas de hotel ou sentiram o piscar de olhos dos moços de fretes.

Nesse “Apelo”, os signatários, de António Bagão Félix a Ricardo Bayão Horta, passando por Freitas do Amaral, João Cravinho e Pacheco Pereira, exigem que o Estado “resgate” a PT, contra a “lógica estrita de mercado e de interesses particularistas” (“interesses particularistas”?). E fazem-no em nome do patriotismo. Querem a “defesa estratégica da soberania nacional”, dos “aspectos inalienáveis da nossa soberania”.

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Como a maioria dos portugueses – que, como eu, não são príncipes, e muitas vezes, prudentemente, na hora do soco se agacham para fora da possibilidade do soco -, percebo muito pouco dos detalhes da história da PT, como percebo pouco das minudências da saga do BES. Mas tenho uma impressão razoavelmente viva do quadro geral da coisa, muito consonante com aquela que um artigo de José Manuel Fernandes (“A PT tem mel”) aqui no Observador desenvolveu. E isso faz-me estranhar a própria ideia do “Apelo” que os príncipes nossos amigos lançam.

Em primeiro lugar, porque a intervenção do Estado repetiria um padrão de comportamentos que esteve indiscutivelmente na origem na própria crise que a PT hoje em dia atravessa. Há bons remédios e maus remédios: esse seria péssimo. Em segundo lugar, porque os signatários parecem viver num mundo imaginário onde há lugar para uma soberania nacional de um tipo que já não pode existir. Seria a última pessoa do mundo a sustentar que a questão da soberania é uma questão despicienda. É mesmo uma questão essencial e discuti-la, no contexto da União Europeia e do euro, é fundamental. Mas não certamente nos termos vagos e, desculpe-se a expressão, ocos, em que o “Apelo” a coloca.

A linguagem do “Apelo” é, de resto, significativa sob este aspecto. Por exemplo, exige-se a Passos Coelho “uma actuação intensamente activa”. Frases deste tipo (porque não “uma actividade intensamente actuante”?) aparecem geralmente quando não se tem nenhuma ideia clara e nada de preciso a dizer e apenas apetece falar. A PT aparece aqui como um objecto possível entre vários outros. Podia ser a TAP, a RTP ou outra coisa qualquer do género. Uma “bandeira” entre outras.

Chateia esta coisa das “bandeiras”. É um resquício de luxos espúrios e de utilidade duvidosa. Se os nossos príncipes, que nunca foram infames nem cobardes, forem ver o que os portugueses verdadeiramente pensam, verificarão que, tirando a superfície da superfície, se estão nas tintas para as “bandeiras”. Não se estão nas tintas para a soberania, mas para as “bandeiras” estão. As “bandeiras” existem apenas na cabeça de uns poucos. As “bandeiras” não estruturam, nem sequer simbolicamente, o nosso elo social. Pretender que o fazem é falsear a realidade.

E se, num acesso de imoderada curiosidade, os nossos príncipes procurarem saber o que os portugueses querem, descobrirão a realidade maximamente prosaica de eles se quererem a pouco e pouco livrar da diminuição das condições de vida a que nos últimos anos foram submetidos. Com algum cuidado e precaução, longe das proclamações grandiosas dos príncipes, que não os tocam nem lhes dizem respeito. Como no poema de Álvaro de Campos, deve-se procurar a “gente no mundo”, por mais que isso custe aos “semideuses”. Não é a PT que precisa de ser “resgatada”, somos nós que precisamos de nos resgatar a nós mesmos. Fora, na medida do possível, de ideologias de qualquer tipo. Para podermos viver um bocadinho melhor e com mais dignidade.

Li no outro dia que, numa autobiografia recentemente publicada, John Cleese conta que a mãe era dada a cóleras extremas: “A raiva enchia-lhe a pele até que já não havia mais espaço para o resto da sua personalidade”. Talvez seja injusto da minha parte, mas a raiva, como coisa distinta de um argumento político racional, parece-me a única justificação possível para este “Apelo”. Uma raiva contra os tempos e contra Passos Coelho, que preenche a pele toda e não deixa espaço para a racionalidade.

A raiva não fica bem aos príncipes. É uma paixão que os aproxima excessivamente de nós, dos que sofrem “a angústia das pequenas coisas ridículas”. Apesar do Professor Freitas do Amaral, é impossível ser-se simultaneamente uma pessoa de génio e um homem normal. Deixo portanto aqui um apelo aos príncipes. Se querem ter “uma actuação intensamente activa”, isenta de “interesses particularistas”, dividam-se, como as pessoas que pensam. Sejam ao mesmo tempo mais olímpicos e mais compreensivos do sentimento comum, por mais que tal agilidade seja difícil. É o que vos pede respeitosamente um velhote que não hesita em “enrolar os pés publicamente nos tapetes das etiquetas”.

E agora vou à piscina.