Com a publicação do despacho 6605-A/2021, no passado dia 6 de julho, o atual Governo dá uma machadada brutal no sistema de ensino. Sorrateiramente, como muito bem foi notado no artigo do Prof. Paulo Guinote, com o ano letivo a terminar, época de exames a começar e grande parte dos docentes preocupados com as listas definitivas de colocação do concurso interno que ocorre de 4 em 4 anos, o Governo determina, sem aviso, sem debate e à socapa, a revogação de todos os programas e metas do ensino básico e secundário – na verdade, apesar da choldra, ainda me custa a acreditar que todos os ministros aceitem este golpe, que nem sequer o ministro da Educação se dignou a assinar, talvez cansado e oculto, já que é o único ministro da Educação que, em democracia, passou de uma legislatura para a seguinte.
Este “despachozinho”, figura menor na cadeia legislativa, publicado sem conferência de imprensa e sem qualquer impacto nos telejornais, nem mesmo nos mais servis deste Governo, que é sempre tão ávido a dar notícias que lhe pareçam populares, passou despercebido pela maioria, mas foi classificado (e muito bem!) por José Miguel Júdice como «Um Golpe de Estado na Educação». Quando li o despacho, no próprio dia da sua publicação, lembrei-me da Reforma do Ensino promovida pelo Marquês de Pombal, que deixou um rasto de miséria na organização do ensino secundário, atrasando o sistema de ensino português em largas décadas, senão séculos, conforme explana o Prof. Jorge Buescu no seu livro Matemática em Portugal – Uma questão de Educação.
Todos sabem que quanto menos se exige, menos se aprende. Se, a certa altura, os treinadores desportivos resolverem começar a baixar a fasquia, o que promovem é a exclusão dos respetivos atletas de todas as principais competições internacionais. Qual é o treinador que se orgulha de baixar a fasquia que apresenta aos seus pupilos?
Há meses que somos constantemente bombardeados pelo slogan “é preciso achatar a curva”, e essa determinação pode ser adequada porque se trata de um combate feroz contra um vírus que não nos traz qualquer benefício, muito antes pelo contrário. Mas quando se pensa no sistema de ensino, quando se pretende organizar a melhor forma de promover o desenvolvimento das nossas crianças e jovens, o que se quer é precisamente não achatar a curva do conhecimento, o que mais se deseja é levantar a curva. As escolas foram criadas para elevar a curva, quanto mais alta, melhor.
No último ano e meio, a propósito de uma doença que até me custa nomear pelo exagero do alarde social, ouvimos repetidamente “testar, testar, para achatar a curva”. Opostamente, desde há milénios que sabemos muito bem que é necessário ensinar, repetir, testar e testar, para elevar o conhecimento. Os testes têm esse efeito, fazem os alunos estudar mais e aprender mais. As provas finais de 4.º e 6.º anos, que foram eliminadas logo que este ministro tomou posse, não tinham qualquer efeito nas retenções, devido não só à escala que é utilizada nas classificações do ensino básico, mas também pela fórmula que era utilizada para o cálculo da nota final, mas tinham um excelente efeito mobilizador dos estudos e das aprendizagens, influenciando o desempenho dos alunos, dos docentes e o empenho das famílias. A eliminação destas provas foi um combate contra as aprendizagens escolares. Se não me falha a memória, foi em 2014, ainda o IAVE investia na produção dos Testes Intermédios, projeto que ajudava as escolas e os professores a balizar e melhor preparar os alunos, que os resultados do Teste Intermédio de Matemática do 9.º ano, realizado em abril, ficaram muito abaixo do esperado, com média de 31%. Perante um resultado tão baixo, as expectativas relativamente à média da Prova Final do 9.º ano, que se realizaria daí a dois meses, ficaram de rastos. O que é certo é que os professores, famílias e alunos, “assustados” com desempenho tão fraco, no pouco tempo que restava investiram fortemente nos estudos e a média da Prova Final desse ano foi de 54%. Extraordinário! Estudar compensa!
Com as “Aprendizagens Essenciais” como referencial para a organização do ensino, destruindo o currículo e todos os programas em vigor, a par da “Autonomia e Flexibilidade Curricular”, que permite grandes variações nos temas tratados de escola para escola, também será fácil imaginar que possam vir a ser eliminadas, a curto prazo, as restantes provas de avaliação externa, promovendo, mais uma vez, a deterioração das aprendizagens.
Esta política educativa de quase terraplanagem, que obriga a reduzir o ensino a “Aprendizagens Essenciais” diminutas e logicamente incoerentes, irá ter como consequência que milhares e milhares de alunos passem pela escola sem sequer terem atingido as designadas “Aprendizagens Essenciais”, pois todos sabemos que os alunos são considerados aptos para progredir sempre que atingem 50% (ou próximo disso). Será que 50% dos “mínimos” olímpicos dá para ir às Olimpíadas? Não. Não dá. Nunca deu, nem nunca dará. Esse é um erro fundamental em educação: o todo não pode ficar-se pelo mínimo essencial, ainda por cima muitíssimo mal estruturado.
A escola pública tem a responsabilidade de promover o máximo das potencialidades dos seus alunos, porque é paga por todos e aberta a todos (embora muitas famílias prefiram não a frequentar, apesar de também a pagarem). Todos temos a perceção de que há muitos alunos que não têm grandes bibliotecas em casa, que não têm, no quotidiano familiar, acesso facilitado a questionamentos científicos ou técnicos ou a debates filosóficos. É a escola, com provas dadas ao longo de séculos, que quando é bem organizada, com currículos exigentes e estruturados, promove o conhecimento, promove o “elevador social”, estimula a inteligência, democratiza os saberes, desenvolve as capacidades e aposta na felicidade (mais do que em falsas alegrias). É a escola que cumpre este desiderato, formando cidadãos em ambiente de qualidade, e os que mais alto elevam a curva do conhecimento são os que, tanto na adolescência como na idade adulta, menos se deixam levar em “cantigas do bandido”.
Onde anda toda a esquerda que sempre contestou, e muito bem, a escolaridade reduzida ao essencial promovida nas décadas iniciais do salazarismo? Mesmo nessa altura, os conteúdos eram bem mais vastos do que agora se propõe. Estão distraídos, ou mudaram de paradigma?
Um Governo socialista, que diz defender os mais necessitados, baixa a fasquia porquê e para quê? Quer dar a todos um diploma vazio de conteúdos? Pensará que um diploma que não corresponda às devidas capacidades, que seja apenas um certificado que não tenha associado um “selo de qualidade”, poderá servir de bilhete para a ascensão social? Com um certificado/bilhete desses pode até acontecer que alguém apanhe o “elevador” no sentido ascendente, mas facilmente se descobrirá o embuste e lhe será oferecido um bilhete de retorno à base. A menos que se imagine que o Estado tem possibilidade de “dar emprego” a todos, sem escrutínio das aptidões, mas creio que nem os mais fervorosos adeptos desta governação conseguem acreditar nisso, pois todos gostam muito da vida que os produtos e serviços das empresas que exigem, avaliam e selecionam as melhores aptidões lhes proporcionam constantemente.
Uma grande fatia dos que frequentam a escola pública são filhos das famílias economicamente mais fragilizadas, em simultâneo, felizmente, com muitos outros que também a frequentam. Ao desenhar programas exigentes, adequados às faixas etárias a que se destinam, coerentes e logicamente estruturados, o Estado está a cumprir com o dever de lhes proporcionar uma educação de qualidade. Reduzir aos mínimos é desvalorizar os alunos, é desrespeitá-los.