Outro dia constatava, com pouca surpresa, o tamanho do falhanço da tentativa de uma fotografia de guardar a magia da Ribeira do Porto. Mesmo com ecrãs grandes, múltiplas lentes e abertura de ângulos, nem na parte expandida das margens couberam os movimentos dos pássaros ou o embaciado da luz.
Nesse mesmo dia, por comemoração do centenário de Saramago, surgiu-me entre aspas e impressa em azulejo para turista levar, uma frase excecional que me ficou a ressoar na cabeça: “Há dentro de nós uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.” (Rapariga dos óculos escuros em “Ensaio sobre a cegueira”)
As coincidências são só chuva que pode molhar quem se puser a jeito. Molhada e ruminando, apercebi-me que tudo a que somos expostos na vida, começando nas pessoas. Mas também, relações. Trabalhos. Experiências. Tudo tem, tal como nós, um pedaço intangível.
Um bocado de existência sem nome, sem forma, e com discreta invisível presença. Mas constante e provada por tudo o que nos cai bem ou mal por motivos nos quais ‘não sabemos bem pôr o dedo’. Aquelas coisas que nos fazem torcer o nariz ou, mais insuportavelmente trending, os ‘feelings’ da vida.
No reino dessa intangibilidade que existe em todas coisas, residem também as escolhas que mais relevantemente ditam o rumo da nossa vida. Gosto de visualizar a coisa como umas alavancas que podemos manobrar, para lá e para cá, para fazer depositar, dentro dos frascos vários que existem disponíveis, a nossa energia, o nosso tempo, a nossa presença ou atenção.
Há sortes e azares (ou desígnios, ou destino, ou qual seja a preferência pessoal de denominação), não tenho cinismo suficiente para o negar, que determinam a qualidade dos frascos disponíveis onde nos depositarmos. Mas há plantar e colher. Há, a cada passo, opções. São nossas as mãos que manobram as alavancas, para lá ou para cá.
Perguntar e ficar para ouvir a resposta em forma de conversa de horas. Atropelar a timidez e boa-educação do ‘está tudo bem obrigada’. Erguer os olhos da escolha de distração e atentar o mundo. Só como quem vê. Aparecer. Estar. Fazer porque se quer. Se pode. Porque alguma coisa cá dentro diz. Fazer. Em vez de não fazer. Escolhas.
A tarefa de saber quando e como acionar estas alavancas é tramada. Para mais, transparentes como são as ditas cujas, também é difícil parar de mexer. Saber em que posição as deixar, para que fiquem corretamente postas.
É fácil lá não ir de todo. Seguir caminhando com os braços bem guardados junto ao corpo sem nada tocar.
O retorno das escolhas não é imediato. Nem direto. Nem proporcional ou garantido. É antes de lenta maturação e formação. É como apostar na bolsa, sem ter necessariamente opção de compra ou venda, e com visibilidade limitada às movimentações do mercado.
O tempo ajuda. A experiência com estas alavancas funciona como a de qualquer maquinaria, faz ficar mais fácil. Vamos nos habituando aos barulhos e à força necessária. Aprendem-se as formas das camadas mais profundas das coisas. Alcança-se conceitos diferentes de amizades. Relações. Empregos. Experiências. Deixam-se de se conseguir medir por ‘bom’ ou ‘mau’. Vive-se em toda uma escala de cinzentos.
Podia acabar com um conselho natalício, mas na realidade é mais um lembrete que se aplica a todo o momento. São as escolhas que nos cabem as que ditam o nosso caminho. Tal como o interior sem nome da rapariga dos óculos escuros de Saramago, ditam o que cabe no nome que leva cada um de nós.