A despesa pública cresce para números cada vez mais elevados, o investimento nos vários sectores sociais do Estado continua a subir consistentemente, mas os serviços públicos caíram em degradação gradual, por vezes abrupta. É uma contradição evidente, que revela um problema político: há muito mais dinheiro investido em serviços que funcionam cada vez pior.

Nos Transportes, as greves tornaram-se a norma: nos 20 anos entre 2002 e 2022, houve 14 meses de Dezembro com greves nos transportes ferroviários, com custos de milhões de euros — apesar de os funcionários terem sido aumentados acima da inflação (na área metropolitana da capital, o aumento médio do salário foi 24% entre 2012 e 2021, quando a inflação nesse período foi de 7,8%). Na Saúde, cresceu a insatisfação dos utentes nos hospitais públicos, apesar do reforço de recursos humanos — entre 1998 e 2017, o número de efectivos nos hospitais públicos ampliou-se 30%, quando a média da administração pública foi de 20%. Na Justiça, são necessários 637 dias para concluir um julgamento em primeira instância, quase o triplo da média dos países do Conselho de Europa (237 dias) — e, ao mesmo tempo, as prisões estão sobrelotadas, ao ponto de, entre 2016 e 2020, 40% dos condenados a prisão efectiva não terem sido encarcerados. Na Educação, o investimento por aluno avolumou-se generosamente, mas apesar disso os resultados não aparecem: os desempenhos escolares dos alunos não melhoraram, os professores estão desmotivados e os alunos colocam-se entre os mais insatisfeitos (23,7%) na Europa com a percepção de qualidade na relação professor/aluno — mas as prioridades políticas, em vez de apostar na qualidade do ensino, focaram-se numa guerra aos privados.

Há opacidade, desperdício, incompetência e inúmeras falhas graves na gestão dos serviços públicos, com o Estado a aplicar o dinheiro dos contribuintes de forma ineficaz — mas anunciam-se indicadores à medida da narrativa de que tudo está bem. Se a sentença lhe soa familiar, mas estranhou os números acima, a explicação é simples: apesar das fortes semelhanças com a realidade portuguesa, o diagnóstico acima refere-se a França. A análise foi construída por Agnès Verdier-Molinié, directora do think-tank Fondation iFRAP e lobista francesa associada à direita liberal, que a publicou em livro esta semana (Où va notre argent?, Éditions de l’Observatoire, Abril 2023), com entrevista de capa na revista Le Figaro Magazine do passado fim-de-semana (edição 7 abril 2023). E, aí, Verdier-Molinié cobre muitas mais áreas do que as já referidas: por exemplo, atrasos administrativos que dificultam a renovação de documentos como o passaporte ou a insuficiência da oferta pública de creches, entre outros temas. Mesmo quem conteste a assertividade do diagnóstico feito, será impossível rejeitar que persistem desafios profundos na organização do Estado francês — desafios que, em grande medida, nos recordam aqueles que vivemos em Portugal.

Uma expressão usada na entrevista e particularmente feliz para o argumento de Verdier-Molinié é que França se tornou numa aldeia Potemkin — uma fachada que disfarça um edifício em ruínas ou, neste caso, um país que se agarra a indicadores de despesa e investimento aparentemente positivos, mas que só desviam a atenção da acelerada degradação dos serviços do Estado. A expressão adequa-se ainda melhor a Portugal, onde o governo se precipita a anunciar sucessos enquanto a vida dos portugueses piora. Talvez isso sirva de consolo para alguns, reconfortados por saber que Portugal não estará orgulhosamente só nos desafios que enfrenta. Infelizmente, creio que a companhia só agrava o diagnóstico: observando-se a forma como os países europeus e a própria UE estão a lidar com os desafios económicos, sociais e geopolíticos actuais, é irresistível aplicar a analogia da aldeia Potemkin a toda a UE, perante sinais claros da decadência política dos europeus. Vivemos tempos de grandes mudanças políticas e sociais — e, receio, não serão para melhor.

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