1 Depois de termos constatado que o excesso de garantias de defesa é uma das várias explicações para a ineficiência do combate judicial ao crime económico-financeiro e para a profunda desigualdade que existe entre o trânsito em julgado de um processo de criminalidade comum e outro de corrupção, é fundamental analisar a origem deste problema.

O processo penal do regime democrático tem três grandes grandes pontos de partida: a Constituição da República de 1976 aprovada pela Assembleia Constituinte, o Código Penal de 1982 (Governo AD) e o Código de Processo Penal de 1987 (Governo Cavaco Silva).

Em todos esses passos houve uma marca preponderante dos advogados — que desde o 25 de Abril tentaram restringir ao máximo a influência das magistraturas. Tudo porque as magistraturas tinham a fama de terem sido colaboracionistas do Estado Novo, atribuindo uma legitimidade legal à Ditadura que não era suposto esta ter.

Acresce que muitas das principais figuras do pós-25 de Abril que emergiram da oposição à Ditadura eram advogados, começando pelos socialistas Mário Soares, Francisco Salgado Zenha e Almeida Santos ou por figuras do PSD, como Barbosa de Melo — que teve, juntamente com Jorge Miranda (professor universitário), uma importância relevante nas negociações da Assembleia Constituinte no que diz respeito à arquitetura do processo penal.

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Não é por acaso também que dos 18 ministros da Justiça dos governos constitucionais, 12 foram advogados, quatro eram magistrados e apenas um foi professor universitário. O que contrasta claramente com o perfil dos ministros da Ditadura ocupado quase exclusivamente por professores universitários.

2 Esta preponderância dos advogados na construção do processo penal é a grande explicação para o seu desequilíbrio, tal como descrevi na primeira parte deste artigo. Um desequilíbrio que assenta muito na desconfiança natural que o próprio sistema penal tem sobre as magistraturas.

Vamos começar pelo Ministério Público (MP). À magistratura do MP foi imposto, e bem, o princípio da legalidade — o que obriga os procuradores a orientarem-se apenas pela lei e pela objetividade dos factos apurados durante a investigação ou julgamento. Significa isto que o MP não pode ser, e não é, um advogado de acusação, procurando a todo o custo uma acusação ou uma condenação em tribunal. É por isso que muitas vezes os procuradores de julgamento pedem a absolvição dos réus que o MP acusou, pois estão obrigados a seguir apenas pelos factos que foram dados como provados em audiência de julgamento.

Contudo, o MP tem uma série de cancelas intermináveis de escrutínio de muitas das decisões e atos durante a fase processual em que ‘manda’ no processo: a fase de investigação. Há uma série de diligências (buscas, escutas telefónicas, detenções, etc.) que apenas podem ser feitas com a autorização do juiz de instrução criminal. Se o MP é uma magistratura, se é obrigado a seguir o princípio da legalidade e se não um advogado de acusação, porque razão é necessário tanto escrutínio? Devido à memória histórica da Ditadura.

O mesmo se aplica aos juízes. O legislador não confia nos tribunais para impedir de forma fundamentada e objetiva listas intermináveis de testemunhas, não dá suficiente poder aos juízes para impedirem o arrastamento dos julgamentos  e desconfia profundamente dos tribunais de recurso ao admitir instrumentos como aclarações ou reclamações. Por exemplo, não há dados estatísticos relevantes que indiquem que as aclarações dos acórdãos ou as reclamações para a conferência tenham qualquer espécie de sucesso. O que significa que são uma absoluta perda de tempo em 99% das situações.

3 O que me leva a uma pergunta: com o regime democrático a preparar-se para comemorar 50 anos em 2024, não será altura de guardar de uma vez para sempre os fantasmas da Ditadura no baú da história? É que o desequilíbrio do nosso processo penal tem uma consequência nefasta: a quebra da autoridade das magistraturas.

A autoridade advém da legitimidade, sendo que esta tanto pode ter origem na lei aprovada pelos representantes da comunidade (a legitimidade natural do poder judicial), como num ato eleitoral (a legitimidade natural do poder político). Ao colocarem-se cancelas intermináveis de escrutínio das decisões de um juiz ou de um procurador, está-se a restringir a sua autoridade e, ao mesmo tempo, a tentar por em causa a sua legitimidade.

Essa é precisamente o foco da narrativa essencial do corporativismo dos advogados desde o 25 de Abril: impedir um reforço da autoridade dos tribunais e do MP para questionar a legitimidade das magistraturas.

Por exemplo, é bastante elucidativa a reação do bastonário Luís Menezes Leitão à entrevista exclusiva de Henrique Araújo, presidente do Supremo Tribunal de Justiça, ao Observador. Com a subtileza que tão bem o caracteriza, Menezes Leitão não só classificou como “autoritária” qualquer crítica ao excesso de garantias de defesa, como disse que os juízes não podem opinar sobre leis que estejam em discussão (promovendo os magistrados à categoria de legisladores), como, finalmente, está preocupadíssimo com o acesso de magistrados ao poder político.

Aliás, questionado sobre a prioridade de uma futura revisão constitucional, o bastonário dos advogados disparou: “A ocupação de lugares no Governo por magistrados não parece muito saudável.”

Resumindo e concluindo: o bastonário quer manter praticamente a exclusividade da liderança do Ministério da Justiça para os advogados. Nada mais errado.

4Vamos ser claros: o dogma de que só um jurista pode liderar o Ministério da Justiça tem de ser destruído. Tal como já aconteceu com outras pastas setoriais, como a Saúde ou a Educação, é fundamental que o líder político da Justiça seja alguém que não pertence a nenhuma corporação que dependa das decisões do Ministério da Justiça.

O fim desse dogma é essencial para termos uma ideia reformista da Justiça para a construção de um sistema penal equilibrado que ponha fim à iniquidade hoje existente e com resultados tão catastróficos para a imagem do regime democrático e para a confiança dos cidadãos nas instituições.

Precisamente porque, ao contrário da imagem que os advogados tentam passar sobre as magistraturas, a Ordem dos Advogados é tão (ou mais) corporativista que o Conselho Superior da Magistratura ou o Conselho Superior do Ministério Público.

Por exemplo, o caro leitor sabe quantos inquéritos/processos disciplinares estão pendentes no Conselho de Deontologia de Lisboa? Cinco mil processos, recordou o Público na entrevista que ao bastonário Luís Menezes Leitão. Ou seja, há neste momento advogados condenados em tribunal por burla, abuso sexual de menores e outros crimes que continuam a exercer. E o que diz o bastonário Menezes Leitão? Não tem nada a ver com isso e considera que não “existem problemas na jurisdição disciplinar da Ordem.” É preciso ter lata!

5 Outro exemplo: a lei que escrutina o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo. Trata-se de uma lei que deriva da transposição de várias diretivas, sendo que a chamada terceira diretiva passou a imputar aos advogados deveres de informação às autoridades sempre que detetam determinados comportamentos suspeitos na circulação dos capitais dos seus clientes. A diretiva foi transposta em 2017 para o nosso ordenamento jurídico, cabendo à Ordem dos Advogados fiscalizar tais comunicações. Eis o que aconteceu:

  • cumprindo a palavra dada em 2013 pelo então bastonário Marinho Pinto no parecer que a Ordem deu à proposta de lei (“a Ordem dos Advogados (…) deixa aqui consignado que se recusará terminantemente a cumpri-la, sejam quais forem as consequências”), o número de comunicações feitas ao DCIAP foi irrisório.
  • Só em 2020, quando a lei de 2017 foi reforçada, é que a lei foi “efetivamente aplicada”, como Luís Menezes Leitão reconheceu ao jornal Eco. O regulamento para tais comunicações serem efetivamente realizadas entrou em vigor apenas em setembro de 2020.

Não só A Ordem dos Advogados não escrutina nada nem ninguém, como também esteve dois anos a viver à margem da lei, recusando aplicar uma lei da República aprovada pelo poder político e no seguimento de uma diretiva da União Europeia que Portugal é obrigado a transpor. A Ordem, tão afoita a criticar os magistrados por tudo e por nada, teve um comportamento que assemelha a um negacionista da Covid ou uma entidade anarquista: recusou cumprir as obrigações que lhe estavam afetas por letra de lei.

E ainda recentemente se recusou abrir um inquérito disciplinar a André Luiz Gomes — advogado de Joe Berardo que foi constituído arguido por alegadamente ter disponibilizado as contas bancárias do seu escritório de advogados para que clientes seus alegadamente transferissem capitais com origem duvidosa.

A Ordem dos Advogados tem cada vez mais um problema sério de credibilidade. É fundamental que os próprios advogados reconheçam isso mesmo para passarem a ser um parceiro de confiança na reforma da Justiça, recusando, repito, nacionalismos judiciários ocos e sem fundamento sobre a superioridade do processo penal português face aos seus congéneres europeus.