Algumas reacções ao crime contras duas raparigas da comunidade ismaelita foram uma lição sobre a diferença entre temer um problema e querer tê-lo.

O que aconteceu terça-feira na comunidade ismaelita é horrível e terrivelmente doloroso, sejam quais sejam, fossem quais fossem, as motivações e as circunstâncias. E, sobretudo para os familiares, amigos e colegas das vítimas, as motivações alteram pouco. O que conta é que perderam duas mulheres que se dedicavam a ajudar gente fragilizada e em necessidade. Exactamente o que a comunidade e todo o seu universo faz com dedicação, pelo mundo fora e muito em especial em Portugal.

Conforme se soube o que aconteceu, além do horror pelas mortes e pelo odioso do acto, houve rapidamente quem pensasses se haveria mais alguma explicação para o que tinha acontecido. Estaríamos perante um caso de terrorismo? Perante um crime de ódio religioso? Perante um fanático ou radicalizado que aproveita a condição de refugiado para atacar precisamente quem o ajuda? Não era impossível. E se um dia acontecer – temos de reconhecer que é uma possibilidade – isso não altera o fundamental: acolher quem foge da morte é um princípio fundamental das sociedades decentes. Presumi-los culpados, e de seguida generalizar a culpa, é exactamente o oposto.

Considerando o que se sabia sobre o atacante, as vítimas e o local do crime, estas dúvidas eram compreensíveis. De resto, em muito outros países da União Europeia, estas circunstâncias não seriam novas e não deixariam de ser facilmente lidas assim: terrorismo, crime de ódio, um refugiado que não o é verdadeiramente. Há, porém, uma diferença enorme entre temer que se esteja perante um crime que não é comum em Portugal e que criaria um alarme social que ainda não experimentámos, e provocar esse alarme social antes de saber o que aconteceu, porque se quer aproveitar o crime para promover um ódio ao outro.

Sem surpresa, quem se alimenta politicamente da raiva aproveitou de imediato o que se sabia, e o que não se sabia, para fazer crer que o crime cometido era provavelmente, além do mais, terrorismo ou a acção de algum radicalizado. Agravado por ser obra de um refugiado muçulmano.

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Quem fez a rápida insinuação de que o crime deveria ser terrorismo ou radicalismo não fez apenas uma associação de ideias, tendo em conta o que se sabia sobre o criminoso, as vítimas e o local. Quem fez essa rápida associação de ideias e concluiu pela insinuação queria que fosse assim que se lessem os factos. Não temia um problema, queria que o problema fosse aquele, para coincidir com a sua agenda ideológica e política. E o que disse ou insinuou sobre a culpa dos emigrantes, dos refugiados ou do acolhimento é absolutamente claro quanto às intenções.

Ao contrário de quem se alimenta do ódio que espalha, a própria comunidade ismaelita, que se distingue pelo bem que faz e pela forma como acolhe quem precisa, reagiu com uma bondade que nem lhe podia ser pedida: disponível para acolher os filhos do homicida, que costumavam frequentar aquela comunidade.

Como noticiava o Observador, «“As crianças estiveram ontem a ser acompanhadas no Centro Ismaili por pessoas que as conhecem, por equipa de psicólogos e pela segurança social. A comunidade ofereceu-se para os acolher em famílias”, avança o Centro Ismaili, onde na terça-feira de manhã o refugiado afegão matou duas funcionárias.»

Entre esta generosidade da comunidade ismaelita e os que tentaram e tentam tornar o caso noutra coisa para estimular o ódio e a raiva, há um mundo inteiro de diferença. É a diferença entre o bem e mal. Cada um de nós que escolha de que lado quer estar.