Maria Eugénia Correia Cabaço, 55 anos, licenciada em Direito, deu aulas na Faculdade de Direito entre 1991 e 1994, tornou-se advogada em 1993, e daí em diante um par de portas se abriu. Em 1996 começou a trabalhar como assessora do então Secretário de Estado da Administração Local e do Ordenamento do Território, José Augusto Carvalho, histórico socialista e professor do ensino secundário que tinha sido presidente da Câmara Municipal de Torres Vedras entre 1983 e 1995, de onde saiu para o Governo de António Guterres. Com o novo Governo do actual Secretário-Geral das Nações Unidas, Maria Eugénia passou a trabalhar, em 2000, com o Secretário de Estado do Ordenamento do Território e da Conservação da Natureza, Pedro Silva Pereira, que se tornaria, anos depois, homem forte dos Governos de José Sócrates e é hoje vice-presidente do Parlamento Europeu.

Com o Governo PSD/CDS, entre 2002 e 2005, Maria Eugénia suspendeu a sua dedicação governativa, mas não à causa pública, e passou a trabalhar como jurista na Caixa Geral de Depósitos, o que, quiçá por mero acaso, voltou a suceder entre 2011 e 2015, anos em que, curiosamente, o PS voltou a estar fora do Governo.

Entre estas duas fases de devoção ao banco público, Maria Eugénia foi assessora do gabinete do primeiro-ministro José Sócrates, em todo o seu primeiro Governo, de 2005 a 2009. No segundo e mais curto mandato, entre 2009 e 2011, trabalhou como chefe do gabinete da Secretária de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades, Fernanda Carmo, reputada geógrafa, hoje e desde 2017 Directora-Geral do Território, sob alçada da então ministra do Ambiente e do Ordenamento do Território, Dulce Pássaro, a qual, por sua vez, tinha sido vogal do Conselho Directivo do Instituto Regulador de Águas e Resíduos entre 2003 e 2009. Porque a vida é cheia de curiosidades e acasos, Maria Eugénia foi nomeada assessora do Conselho de Administração da nova Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos em 2017. Antes disso, foi ainda adjunta do ministro das Finanças, Mário Centeno, hoje governador do Banco de Portugal.

Se recorro ao estranho caso de Maria Eugénia Correia, a chefe do gabinete do defunto ministro das Infraestruturas, João Galamba, que na passada semana se deu inteiramente (embora sem sucesso) à morte para salvar a vida política do seu actual amo político, não é porque nada de pessoal me mova contra ela ou contra qualquer uma das pessoas que citei acima. Algumas delas, de resto, e para mal dos nossos pecados, foram, apesar de tudo, legitimadas nas urnas, através do voto do povo, para o exercício de alguns dos cargos que desempenharam. Mas subsiste em todo este enredo a que se chegou por causa da TAP uma espécie de sub-mundo da administração pública que era, regra geral, desconhecido do grande público e que agora nos entra pelos olhos dentro.

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O estranho caso de Maria Eugénia é só um exemplo, embora seja dos bons, de uma rede tentacular de gente que terá os seus méritos profissionais, académicos e até intelectuais, mas que vai fazendo uma carreira (opaca, sem escrutínio, muitas vezes sem concursos públicos, onde vale acima de tudo a lista de contactos telefónicos e a rede de casas onde se janta e de restaurantes onde se almoça) pelos lugares de elite da administração pública – a qual, por sua vez, de norte a sul, de este a oeste, da esquerda à direita, todos reconhecem que é como um certo tipo de caos burocrático e que serve cada vez pior os cidadãos. De maneira que talvez faça sentido fazermos como sugeria João da Ega: se é este o triste cenário a que as mentes brilhantes que dirigem a administração pública a têm conduzido, não será má ideia começarmos a substituí-las por alguns estúpidos. Provavelmente ficávamos a ganhar.

Não é esta, porém, uma realidade recente, nem exclusiva do Partido Socialista. O PS terá contra si o facto de governar de forma quase ininterrupta há quase 30 anos e de se ter pulverizado de forma mais acentuada pelos serviços do Estado durante esse período. Mas ela é uma realidade que atinge também o PSD, hoje menos escrutinada, mas não menos desejada pela sua militância. Não custará, por isso, deitar os olhos ao percurso de gente desconhecida das grandes massas, mas que quem já perdeu politicamente algum tempo de vida não deixa de conhecer, e isso toca tanto ao PS (talvez em maior número) como ao PSD (hoje de forma mais reduzida do que já ocorreu noutros tempos; não faria mal umas idas à hemeroteca para reler alguma imprensa das épocas laranjas). É certo que a política, que é feita de homens, é, por isso mesmo, naturalmente imperfeita e não é impoluta. Não será, por isso, apropriado justificar o comportamento de uns com os dos outros. Não é isso que pretendo aqui fazer, mas antes demonstrar que é possível fazer melhor na condução dos destinos do Estado e da Administração.

Tanto assim é que já Mário Soares, em entrevista a Maria João Avillez, recordada por Joaquim Vieira na biografia que lhe escreveu, salientava, a propósito do ajustamento financeiro levado a cabo pelo Governo do Bloco Central (1983-1985), que, apesar de defender o «princípio salutar» de «menos Estado e melhor Estado», reconhecia que o mesmo era «de muito difícil aplicação» porque o mesmo «vai contra velhas rotinas, serviços instalados, direitos adquiridos – e nem sempre legítimos –, o peso e a morosidade tradicionais da burocracia. E vai também contra os interesses constituídos, que não dão batalha frontal, mas são difíceis de vencer.»

E também Francisco Sousa Tavares, deputado Reformador eleito pelas listas da Aliança Democrática, afirmava no Parlamento, em 1979, que era preciso que se combatessem aquilo a que chamava «as estruturas nacionais do abuso», «certas coisas que se instalaram na sociedade portuguesa à sombra de ideologias ou em seu nome e que têm constituído um peso extraordinariamente negativo na administração do País e, de certa maneira, a causa de malogro de todos os programas governativos». E pedia que não se delapidasse «o dinheiro da Nação em benefícios que na sua maior parte não existem: na multiplicação de uma burocracia e de um funcionalismo no qual se está afundando a energia criadora e a potencialidade de trabalho para dar origem à criação de uma nova classe e de uma nova casta, que é a casta burocrática que domina o País.»

Toda a gente, pelo menos desde que há democracia, parece saber, mas poucos quiseram fazer alguma coisa para alterar este situacionismo de clique. E hoje, em 2023, parece existir como que uma única grande estrutura nacional do abuso, que vai da TAP à Carris, do Metro à CP, das direcções-gerais a certos cargos de fantasia espalhados pelo corpo diplomático ou por qualquer outro sector da administração que servem uma casta de privilegiados, não raras vezes sem capacidade e sem qualificações – ou que, mesmo quando as têm, afastam concorrência e competição porque funcionam em circuito fechado. O país é, hoje, uma super-estrutura nacional do abuso. E não será reformável enquanto não for unânime na sociedade portuguesa que o fundamental aqui não é que cada um lute o mais possível para entrar nela, mas, por uma e definitiva vez, destruí-la.

P.S.1 A direita sociológica, mais uma vez, excitou-se com Cavaco Silva. Não me debruçarei especialmente sobre o discurso do ex-presidente da República (embora não tenha dito uma única mentira), nem sobre as reacções (embora me apeteça sublinhar aqui o PMP – Pequeno e Médio Político que agora fala em nome do Partido Socialista), e muito menos fazer a enésima análise do cavaquismo. Direi apenas o que julgo mais interessar sobre o assunto: que a direita se excite com Cavaco Silva como não se entusiasma com mais ninguém (excepto Passos Coelho) diz mais do estado lastimável a todos os níveis a que se deixou entregar do que outra coisa qualquer. Montenegro surgiu, no fim-de-semana, como o filho a quem o pai aparece para ensinar como se faz. O que explica tudo.

P.S.2 Passaram-se 25 anos do desaparecimento de Francisco Lucas Pires, a referência intelectual e filosófica que a memória da direita deixou cair. Curiosamente, a meados da década de 80, Lucas Pires afirmava que o país precisava de uma direita que fosse conquistadora e não herdeira. Quase 40 anos depois dessa frase, 25 anos depois da sua morte, parece estar quase tudo na mesma. E reforço o quase, porque tenho aprendido com Lucas Pires, ao longo de mais de ano e meio de viagem, a não ser tão pessimista.