O caso das duas gémeas de dez anos vivendo numa garagem infecta sem nunca terem ido à escola é aterrador. Por mostrar a facilidade de duas crianças – que não eram clandestinas, tinham nome, registo, certamente número de contribuinte e de utente e até boletim de vacinas em dia e cuja existência era conhecida de várias instituições – escaparam a qualquer controle. Porventura se a AT suspeitasse que as gémeas tinham impostos para pagar, tudo teria sido revirado até descobrir o paradeiro das infratoras fiscais. (Já regresso à AT.) Porém, como por azar dos Távoras não deviam nada ao fisco, ficaram ignoradas por todos os que tinham obrigação de as proteger.
Que houve negligência grosseira – bom, está escancarado. A CPCJ que não continuou a avaliar duas crianças que sabia em risco e demorou meses a responder a denúncias. O passar a batata quente de uma instituição para outra – tudo em ritmo de caracol. O centro de saúde que as vacinava mas não notava que não iam à escola (e não percebi ainda se tinham médico de família e iam a consultas regulares).
E, sobretudo, o Ministério Público que não quis saber. Tinha duas crianças para descobrir, mas tiveram mais que fazer. Não vou entrar em guerras contra o ministério público motivadas por ter feito acusações high profile de corrupção e investigar políticos – apoio tudo isso. Mas comecemos a escrutinar o MP e o espírito de serviço que move os magistrados. Há tempos li uma notícia dando conta que os magistrados se recusavam a investigar casos de violência doméstica, pelo que estas investigações caíam nos colegas mais novos que não conseguiam escapulir-se – e não têm tanta experiência, o que pode explicar também alguns casos mal construídos que chegaram aos tribunais e tiveram desfechos atrozes. Que MP é este, com magistrados que consideram abaixo de si investigar crimes violentos cometidos contra gente anónima e geralmente pobre? Só os casos mediáticos valem a pena?
O retrato que sai do MP não é famoso e não me espantaria que a procura das miúdas ficasse a cargo de um novato mais preocupado em chegar à investigação de burlas empresariais que aparecem nos jornais que em resgatar duas crianças. A Segurança Social e a PSP, de resto, negam ter recebido pedidos do MP para as localizar. Ninguém localizou e o MP não se maçou mais. Apesar de saber que não estavam inscritas numa escola – o que deveria ter aumentado a urgência de descobrir as gémeas.
A negligência é gritante. E assusta como nem por duas crianças houve esforço de todas estas organizações. Quem é pobre, sem estudos e sem uma rede familiar que proteja pode literalmente deixar de existir.
Mas piora. Porque as instituições públicas não foram só negligentes. Foram mesmo agentes ativos na destruição desta família. As gémeas estavam a morar numa garagem imunda porque perderam as duas casas anteriores onde viviam com mais condições. E perderam essas duas casas por culpa do estado.
O pai das gémeas teve de vender a casa onde a família morava para pagar dívidas ao fisco. (Regressamos à AT.) Sei bem que haverá muitas manigâncias para não pagar os impostos, e que esses casos não devem passar impunes. Mas sabemos igualmente os excessos que a AT se permite na perseguição dos contribuintes. Também é conhecido que quem não tem capacidade para pagar a advogados para lidar com a AT fica qual presa rechonchuda que capturou a atenção de uma hiena. Não tenho pormenores das dívidas à AT, mas o pai das gémeas teve de vender a casa para as pagar. Lembro que até 2016 a complacência dos legisladores e governos com o abuso fiscal era de tal ordem que nem a casa de família estava a salvo de penhora pela AT. (Continua sem estar, de penhoras por fornecedores de serviços.)
Apesar de o direito à habitação ter até proteção constitucional – e de não lembrar a gente de bem penhorar uma casa onde uma família vive – na prática dos dias o estado português vê como mais importante arrecadar umas centenas ou milhares de euros de impostos que uma família ter onde dormir. No estado burocrático fiscal que temos – cobrar impostos e aplicar multas é o fim último – não tenho dúvidas que encontraremos muitas famílias que vivem em casas municipais, pagas pelos nossos impostos e desviando recursos de outras políticas sociais, porque foram escorraçadas das casas que possuíam para pagar ninharias à AT. Não há aqui qualquer racionalidade, é muito mais custoso fornecer a habitação social que o recuperado em impostos, mas a burocracia é cega e os funcionários da AT têm objetivos a cumprir e comissões a receber.
A segunda casa da família foi demolida pela Câmara Municipal da Amadora. Não consigo entender como um município destrói a casa de uma família, para mais com duas crianças, sem cuidar que têm outra solução para habitação. Não concebo o racional de destruir uma casa só porque sim. Estava ilegal? Porque não se obrigou a legalizar, com as condições técnicas previstas na lei, em vez de destruir? Para quê destruir? Mesmo que a família tivesse pedido e obtido uma casa camarária, não é preferível poupar dinheiro não destruindo propriedade e poupar dinheiro não fornecendo habitação social a quem tem casa (e usar esses recursos noutros lados)? A casa estava a atentar contra os direitos de terceiros? Ou somente contra os regulamentos camarários? Como se destrói uma casa que não prejudica ninguém? Por que vai um município tornar uma família sem abrigo?
Esta história destas gémeas não é só de um Estado que não quer saber. É a história de um Estado que gasta recursos a perseguir os seus cidadãos, incluindo os mais pobres e indefesos, colocando regulamentos e alíneas legais e voracidade fiscal e tretas burocráticas à frente até do direito à habitação. Que usa um poderio desmedido e implacável a esmagar os indivíduos e as famílias por ninharias – e de seguida nem lhes estende a mais básica proteção. É uma história onde está tudo errado.