Não é fácil, ainda em cima do que se tem passado e ainda falta acontecer, falar sobre a greve dos motoristas de matérias perigosas e de mercadorias. Mas os serviços mínimos decretados pelo Governo, assim como o beneplácito inédito dos partidos de esquerda, permitem desde já antecipar que teremos neste caso um separador histórico das greves em democracia. E concluir que estamos perante um efeito secundário do inédito Governo apoiado pela esquerda.
O Governo foi longe de mais naquilo que definiu como serviços mínimos nesta greve dos motoristas? O Conselho Consultivo da PGR está mais do lado do Governo e dos patrões da ANTRAM do que do lado dos sindicatos: embora considerando que não tem dados para dizer que a greve é ilícita, dá ao governo cobertura legal para o que está a fazer e para uma eventual requisição civil. Não estará o ministro da Administração Interna a dramatizar para além do necessário quando decreta “Situação de Alerta”?
Há do lado do Governo um argumento muito forte para justificar a resposta musculada que deu em matéria de serviços mínimos: o facto de a greve ter sido decretada por tempo ilimitado. Claro que a greve sem limites só pode ser teórica. Os sindicatos não têm fundo de greve e cada dia sem trabalhar significa perder salário, entre 26 e 33 euros por dia. E o Governo sabe que os motoristas não aguentam muito tempo a perder salário.
Mas aquilo que pode ter mobilizado mais o Governo é a opinião pública, ou seja, o facto de a greve ter muito poucos ou nenhuns apoios. Essa falta de apoio foi sendo construída com o retrato à lupa de Pedro Pardal Henriques, na linha aliás do que já tinha sido feito com a bastonária da Ordem dos Enfermeiros. Desacreditar os líderes ou principais protagonistas da greve foi desde logo a primeira fase deste processo. Seguiu-se a dramatização, com o próprio Governo a contribuir, também, para o lamentável espectáculo de corrida às bombas de gasolina e a dar mais força à ANTRAM do que aos sindicatos.
Tudo se conjugou para, ainda antes da greve, se perceber que não teria o efeito da anterior. Primeiro, todos tiveram mais do que tempo para se preparem para esta greve, das famílias às empresas, mesmo os mais distraídos com as notícias. Os serviços mínimos e sucessivos alertas do Governo fizeram o resto, reforçando ainda mais as medidas de precaução de todos. De facto, como disse Marques Mendes, uma estratégia inteligente dos sindicatos teria sido desconvocar a greve, evitando ser para as eleições legislativas aquilo que o caso dos professores foi para as europeias: um suplemento de votos para o PS. Este último sublinhado feito por Rui Rio.
Mas deixemos as tácticas de cada um e olhemos para algumas declarações, argumentos e mudanças de posições.
Uma das mais surpreendentes declarações é a de que a greve tem custos e prejudica a sociedade em geral. Ora essa sempre foi a lógica das greves. A dor que uma greve provoca tem sido, e sempre foi, directamente proporcional ao poder reivindicativo de cada classe de trabalhadores, criando-se aliás por isso algumas injustiças. Os transportes públicos foram no passado um exemplo disso: o poder que os motoristas tinham sempre lhes deu uma vantagem. Foram as dores que provocaram as greves desde a Revolução Industrial que explicam as conquistas que foram sendo obtidas por quem trabalhava por conta de outrem. E foram sempre aqueles que estavam em sectores que mais danos podiam causar que conseguiram maior sucesso nas suas reivindicações, abrindo caminho, depois, para os trabalhadores de outros sectores.
O argumento do dano para a sociedade, para justificar a dimensão dos serviços mínimos que o Governo decretou, é muito perigoso e abre uma caixa de Pandora. Aceitando esse argumento, a partir daqui médicos, enfermeiros, motoristas de transportes públicos ou pilotos de aviação ficam limitados no seu direito à greve. Ou seja, as greves, em toda a sua amplitude, apenas poderão ser feitas nos sectores que não provoquem danos na sociedade. E como consequência as greves perdem toda a sua eficácia enquanto mecanismo de pressão para a conquista de aumentos salariais ou outros direitos. Eliminando o efeito das greves dos que provocam dor é afectar seriamente o poder dos trabalhadores. Se quem provoca dor não a pode provocar porque os serviços mínimos o impedem, então quem não provoca dor com a sua greve fica ainda mais fraco no seu poder reivindicativo, perdendo quem lhes abre o caminho na conquista de direitos.
O argumentário que limita o direito à greve é ainda mais preocupante por estarmos perante um sector privado, onde em geral o poder reivindicativo é praticamente nulo e sobre o qual o Estado exerce um escrutínio muito deficiente no que diz respeito ao cumprimento da lei. Basta ver, por exemplo, o que se passa no sector do turismo.
Uma das surpresas – ou talvez não – deste processo é a timidez com que o PCP e a CGTP criticaram a dimensão dos serviços mínimos decretadas pelo Governo. Sim, o PCP acusou o Governo de limitar o direito à greve, mas pouco mais se ouviu. Nunca a CGTP permitiria medidas destas, sem se manifestar ruidosamente, se estivesse em causa um sindicato seu. Mais, o sindicato do sector que está na CGTP manteve-se a negociar. Pior ainda esteve o Bloco de Esquerda, que nada disse durante dias para Catarina Martins afirmar depois que “entorses ao direito à greve não são aceitáveis” .
O que diria o PCP, o BE e a CGTP se não estivéssemos a viver com um Governo que têm apoiado? É impossível não pensar no que pensou Ana Sá Lopes – com um governo do PSD e do CDS aquilo a que estamos a assistir era impossível. Só a esquerda consegue limitar o direito à greve sem que exista contestação, como só a esquerda, nomeadamente o PS de José Sócrates, conseguiu fazer reformas, sem que fosse a mando da troika, que eram fundamentais para o País, reduzindo direitos por exemplo nas pensões ou eliminando rendas, como por exemplo no sector das farmácias.
Mesmo sem ser na óptica eleitoral, claro que se percebem as decisões do Governo e a reacção tímida dos partidos à esquerda assim como da CGTP. Querem matar todos os movimentos que estejam desenquadrados do quadro institucional que temos desde praticamente o 25 de Abril. Sindicatos que não estejam enquadrados na CGTP ou na UGT ou sindicatos que procurem formas alternativas de se financiarem, como aconteceu com os enfermeiros, são uma séria ameaça à estabilidade política e social. Por muito que pareça absurdo, foi o peso da CGTP e a sua capacidade de enquadrar a contestação, assim como o PCP e o BE, que contribuíram também para o facto de Portugal não ter sido a Grécia na era da troika.
Mas são também o PCP e o BE que, indirectamente, estão a contribuir para o florescimento de sindicatos independentes, uma vez que se enquadraram como partidos que participam no poder ao darem suporte ao governo do PS. O País perdeu, ou sentiu que perdeu, os partidos e a central sindical que desempenhavam a função de representar a contestação.
Escapámos até agora aos partidos populistas mas não estamos a escapar ao aparecimento de sindicatos que podem desestabilizar o regime. Até agora o PS tem conseguido retirar-lhes força – veja-se o exemplo dos enfermeiros – e pode ter de novo sucesso com os motoristas. Mas estamos a entrar em águas ainda não navegadas e é preciso ter muito cuidado para que estas manifestações de força não acabem por ferir direitos fundamentais. Ninguém quer um antes e depois da greve dos motoristas em matéria de direitos.