O início do calendário diplomático é marcado pelo maior encontro global de líderes e diplomatas na Assembleia Geral da ONU, em setembro, em Nova Iorque. Mas a ONU serve para alguma coisa? A Carta fundadora de 1945 é muito clara quanto à sua missão principal: evitar uma Terceira Guerra Mundial através do diálogo permanente entre os Estados. E nesse ponto vital tem tido sucesso. A sua Assembleia Geral é um bom ponto de encontro, um bom megafone global e um bom momento de diagnóstico da política global.

Zelensky e a guerra que importa para todos

A guerra tem corrido suficientemente bem à Ucrânia a ponto de permitir a Zelensky viajar mais ao exterior, ao contrário de Putin. A ida a Nova Iorque tem a vantagem de com uma única deslocação falar em pessoa ao aliado mais importante, os EUA, e poder encontrar-se pessoalmente com líderes de múltiplos países da América Latina, de África e da Ásia. A dupla prioridade foi manter o apoio dos aliados do Ocidente alargado, sobretudo dos EUA. Neste ponto as críticas ao egoísmo polaco na questão dos cereais, sendo justificadas, não foram muito diplomáticas. E, em segundo lugar, explicar a muitos países do Sul Global com uma posição ambivalente que esta agressão imperialista russa é uma ameaça também para eles. Apontou para a guerra russa à exportação de cereais ameaçando a segurança alimentar global e o perigo de se normalizar o regresso do direito de conquista imperial. O discurso foi eloquente, mas Kiev sinalizou que sabe que será difícil alcançar mais do que evitar que alguns destes países se aproximem da Rússia ou defendam uma paz imediata a qualquer preço. Veremos os resultados concretos em termos de ajuda dos EUA.

O velho Biden lidera o Mundo livre

Biden tem 80 anos e nota-se. Ele nunca foi um grande orador, mas está pior com a idade e nalguns momentos foi soporífero. É o preço da gerontocracia reinante nos EUA. Mas, independentemente das limitações do seu líder, os EUA continuam a ser a mais poderosa democracia pluralista, a maior economia e um colosso militar. Por isso, o encontro com o Presidente dos EUA é, geralmente, o momento mais desejado na deslocação de líderes mundiais a este encontro anual. Lula e os seus conselheiros, apesar do tradicional antiamericanismo do PT, confirmado num lamentável acordo de cooperação com o PC da China, fizeram questão de dizer isso mesmo. Voltando ao discurso profissionalmente bem escrito da sua equipa, Biden sinalizou que não vai desistir da Ucrânia. O problema é saber se será ele o presidente a partir de janeiro de 2025. Descansou os que temem que esta Segunda Guerra Fria se transforme numa guerra quente com a China, prometendo uma competição responsável. Mostrou abertura ao Sul Global, nomeadamente na reforma do Banco Mundial ou mesmo do Conselho de Segurança. Esta última é ainda mais improvável num Mundo mais dividido. Mas de todos os membros permanentes, os EUA até seriam os mais abertos ao alargamento dos Membros permanentes, muito mais do que uma Rússia decadente, ou uma China que veria promovidos países rivais – a Índia, o Japão – em qualquer mudança credível do status quo.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Lula quer liderar o Sul e desvaloriza Zelensky

Tradicionalmente o Brasil tem o direito a ser o primeiro a falar dos 193 Estados representados na Assembleia Geral. Este discurso foi claramente melhor do que as falas improvisadas de Lula. Apostou no combate à crise climática ou à desigualdade crescente, temas em que o Brasil tem legitimidade e peso. Procurou afirmar-se como o líder do Sul Global na defesa da revisão das instituições globais, aproveitando as ausências dos líderes da China e da Índia. O problema é que no Sul Global há uma grande diversidade de países que dificilmente aceitarão o Brasil como seu líder. E se Lula até criticou o “nacionalismo primitivo, conservador e autoritário”, nunca pareceu ter percebido que isso se ajusta como uma luva ao seu parceiro tão apreciado dos BRICS, Vladimir Putin. É verdade que Lula não chegou ao ponto de fechar a porta a Zelensky. Mas Celso Amorim, o seu mais influente conselheiro de política externa, fez questão de desvalorizar o encontro. E Lula voltou a insistir em estabelecer uma falsa e chocante equivalência entre a Ucrânia agredida e a Rússia agressora. Menos mal que não culpou a União Europeia ou a NATO pela guerra. Em todo o caso, as suas únicas críticas específicas foram dirigidas aos EUA, como a denúncia das ineficazes sanções a Cuba ou do processo contra Assange. Não lhe ocorreu denunciar a supressão das liberdades em Cuba ou o fechamento da pouca imprensa livre que ainda restava na Rússia. O Brasil continua a ser importante para Portugal, para os EUA (como se viu), para a UE, mas convém não ignorar a realidade em conversas futuras: a solidariedade esquerdista e sulista importa mais para Lula do que a defesa da lei internacional ou da democracia pluralista.

Guterres, Portugal e os ausentes numa Segunda Guerra Fria

António Guterres está em boa forma. Foi eloquente quanto aos grandes desafios do futuro, como a crise climática ou a inteligência artificial. Relativamente a esta última questão, cada vez mais urgente, esteve muito bem ao adiantar que a ONU estava disposta a criar com uma agência global de fiscalização do enorme potencial desta tecnologia, para o bem e para o mal, no modelo da Agência Internacional da Energia Atómica. Mas nessa, como noutras questões, foi claro: a ONU não pode decidir, só os Estados Membros podem decidir e implementar. Ou seja, não esteve com as falinhas vagas apreciadas por uma certa escola diplomática portuguesa. Deixou claro que nesta fase inicial duma Segunda Guerra Fria o Mundo vive grandes incertezas e perigos. Guterres disse a Amanpour que como Secretário Geral não tem nenhum poder. Diria que percebeu que quase só tem o poder da sua palavra e para ela ser escutado precisa de ser vista como verdadeira e credível.

Portugal foi representado pelo Presidente Marcelo, num bom discurso, em que as convergências entre o Brasil e os EUA ou a possibilidade e impacto efetivo da reforma da ONU foram manifestamente exagerados. Tão importantes como as presenças, foram as ausências. Só um dos cinco membros permanentes, os anfitriões, os EUA, se fizeram representar ao mais alto nível. Entre as grandes potências há claramente quem entenda que existem fóruns mais eficazes. Os G20, apresentado por muitos como um grande exemplo de progresso, tiveram uma cimeira recente que concorreu com esta Assembleia onde todos os Estados estão representados. Esta Assembleia deixou claro que vivemos num Mundo mais conflituoso, mais dividido e mais desigual. Esta Segunda Guerra Fria torna a missão da ONU de alcançar grandes acordos sobre os grandes problemas globais mais difícil, mas ainda mais importante.