Finalmente começa a perceber-se como é que o mesmo auditor, a Deloitte, considerou que, de um ano para o outro, os créditos da CGD valiam menos cerca de três mil milhões de euros: o critério de avaliação de imparidades mudou para o que foi o modelo da Blackrock para a Irlanda. As perdas potenciais passaram a ser avaliadas admitindo, hipoteticamente, que a CGD tinha de se desfazer da sua carteira de activos de um momento para o outro, em vez de, como se fazia até agora, registar as perdas à medida que iam ocorrendo.
Comecemos pelo princípio. Quando em 2011 o Programa de Ajustamento foi negociado com a troika, consagrou-se que os bancos iriam avaliar as suas imparidades de acordo com o pressuposto da “continuidade do negócio” ou na expressão anglo-saxónica “going concern”. Um modelo diferente do aplicado na banca da Irlanda, onde as imparidades foram avaliadas partindo do princípio que os créditos tinham de ser vendidos de imediato, como acontece com uma empresa falida. A metodologia irlandesa ficou conhecida como “modelo Blackrock”, assumindo o nome da consultora norte-americana que o concebeu.
Vários factores convergiram para a troika aceitar um modelo de avaliação das imparidades diferente do da Irlanda e que dava aos bancos margem, para minimizarem as suas perdas e, assim, as necessidades de capital. A falta de dinheiro foi um dos principais factores, uma vez que o empréstimo seria curto, caso se optasse pelo modelo irlandês. Estimativas divulgadas pelo governador do Banco de Portugal no início de 2016 apontam para valores entre os 48 e os 56 mil milhões de euros.
Estando as necessidades de financiamento do Estado, sem as empresas públicas, estimado em 66 mil milhões de euros, intervir dessa forma na banca elevava o empréstimo da troika para valores superiores a cem mil milhões de euros. Além disso, ditaria a nacionalização da banca e obrigaria, com elevada probabilidade, a uma reestruturação da dívida – ou a discussões mais difíceis com o FMI uma vez que Portugal partiu para o resgate já com a dívida pública a representar 100 por cento do PIB.
O Banco de Portugal bateu-se também na altura para que não se seguisse o modelo irlandês argumentando que, contrariamente à Irlanda, a banca portuguesa não estava falida. E, por isso, não fazia sentido avaliar a carteira de crédito como se os bancos fossem forçados a vendê-la no dia seguinte.
Chegou-se então ao consenso de avaliar as imparidades segundo o critério de continuidade do negócio, ao mesmo tempo que o Banco de Portugal supervisionaria o rigor desses números com auditorias independentes. E foi segundo este critério que as imparidades foram sendo registadas, ainda que se perceba que os bancos tentavam reduzir ao mínimo esse registo de perdas. Como se percebia isso? Primeiro porque as imparidades aumentaram sempre nos anos em que houve auditorias do Banco de Portugal. Depois pelas sonoras criticas do BPI, que sempre considerou que os seus concorrentes estavam a sobreavaliar os créditos que tinham em carteira – e, assim, a subavaliar imparidades.
O que verificamos agora com a CGD é que o critério mudou, aproximando-se mais do modelo seguido na Irlanda. O comunicado que a CGD divulgou com os resultados revela que o banco “procedeu à avaliação do valor dos seus activos seguindo os princípios de avaliação de um ‘novo investidor privado significativo’, conforme acordado com a DGComp”. Ou seja, os créditos foram avaliados como se a CGD tivesse de ser vendida à pressão, o que corresponde a uma significativa desvalorização dos seus activos.
A vantagem deste modelo tem sido bastante discutida. Uma delas é limpar de uma só vez o passado, assumindo perdas que até podem não ocorrer, mas que tornam o futuro mais fácil e com maiores garantias de ganhos. Um outro benefício está relacionado com o complicado processo de capitalização de um banco público, no quadro das regras de defesa da concorrência: é preciso adoptar um conjunto de medidas para que o aumento de capital com dinheiro público não seja uma ajuda do Estado que distorce a concorrência. Precisando a CGD de um aumento de capital, então o melhor é elevar esse valor ao máximo possível, para não ter de se percorrer outra vez aquele complexo e difícil processo junto da Direcção Geral europeia da Concorrência. Finalmente e não menos importante, a “limpeza” com o aumento de capital cria margem para conceder novos créditos.
Mas nem tudo são vantagens e as desvantagens são especialmente perigosas. O excesso de capitalização e de desvalorização dos créditos criam enormes tentações para a CGD e para o Governo.
A desvalorização excessiva dos créditos gera margem para os devedores pagarem muito menos do que aquilo que devem e para as empresas que compram crédito malparado fazerem bons negócios. Ou seja, corremos o risco de estar a transferir ainda mais dinheiro dos contribuintes para devedores ou empresas cujo negócio é recuperar créditos, caso exista uma venda de carteiras de crédito por parte da CGD.
O primeiro incentivo perverso verifica-se de imediato na CGD. Imagine-se um crédito de 100 que valia 60 com os critérios de avaliação anteriores e agora está avaliado por 40. A área de recuperação de crédito da CGD atingirá o seu objectivo se conseguir que o devedor pague apenas aquilo que está registado no balanço do banco, ou seja, os 40. Tal como o devedor tudo fará para pagar apenas os 40.
O presidente da CGD tem consciência desse incentivo perverso, uma vez que, na apresentação de resultados, fez questão de sublinhar que os esforços de recuperação do crédito se vão manter. Mas o incentivo está lá, numa convergência de interesses do credor e do devedor. E assim acontece uma transferência de rendimento dos contribuintes para os devedores da banca – 60 dos 100 emprestados correm o risco de serem “pagos” por quem aumentou o capital da CGD, ou seja, todos nós. Mais 20 do que no modelo anterior de avaliação dos activos
Uma segunda transferência de rendimento poderá aparecer-nos como uma vitória do Governo na resolução dos problemas da banca, através da criação do “banco mau” ou da venda de crédito malparado da CGD a empresas especializadas neste tipo de negócio. Ninguém sabe se vai acontecer, mas com os créditos agora mais desvalorizados, essas empresas que compram crédito malparado têm mais margem para fazer bons negócios. Compram o tal crédito de 100, que vale 60, por 40 e fazem uma margem de 20. Quem está a pagar? Mais uma vez quem contribui para o aumento de capital, neste caso os contribuintes. (Para quem subscreve as obrigações que a CGD vai emitir é indiferente porque vão ser remunerados).
Sim, vamos ficar com uma CGD bastante mais sólida e capaz de desempenhar a sua função de financiamento da economia. Mas agora é preciso que a administração da CGD, liderada por Paulo Macedo, resista às tentações da desvalorização dos créditos, deste excesso de imparidades.
Os banqueiros já usaram demasiado mal os nossos depósitos. Os banqueiros, nalguns casos em conluio com a classe política, fizeram uma brutal transferência de recursos dos contribuintes para alguns devedores da banca. A capitalização da CGD não deve servir para aumentar ainda mais essa captura de dinheiro dos contribuintes por devedores ou empresas de crédito malparado conhecidas como “abutres”.