Quando estava na London School of Economics, a fazer o doutoramento, resolvi inscrever-me durante um semestre num seminário sobre Materialismo Histórico. O seminário começava com Hegel, mas era essencialmente sobre a visão Marxista da história e, obviamente, do capitalismo moderno. Naturalmente, as discussões semanais (duas horas) acabavam muitas vezes por abordar questões de praxis política. Eu era o único não-Marxista. Todos os outros, eram Marxistas, uns mais ortodoxos, e outros menos. Era uma mistura interessante, com ingleses (um era membro do Partido Comunista Britânico, outro da ala mais à esquerda dos Trabalhistas, trabalhando hoje com Corbyn), um espanhol, um grego, uma cipriota, uma iraniana, uma canadiana, e quatro alemães (uma da antiga RDA).
Eu era mais um observador (já nessa altura…) do que um participante. Lia os textos para discussão, fazia algumas perguntas provocadoras, mas ouvia sobretudo. Na altura, década de 1990, as divergências políticas e ideológicas eram mais pacíficas do que hoje, e alguns dos participantes eram bons amigos (a música, os copos e o futebol permitiam ultrapassar o que a política dividia). Aprendi muito naqueles seminários, mas há uma lição que nunca esqueci: num grupo de Marxistas as divergências são violentas. A acidez, a dureza e a intolerância das discussões eram impressionantes. A definição de ortodoxia não permite dissidências nem aceita diferenças. As rivalidades entre camaradas são muitas vezes mais implacáveis do que os conflitos com os inimigos ideológicos.
Recordo-me frequentemente daquele seminário quando observo as relações entre as esquerdas na política portuguesa. Foi sempre assim, mesmo antes do 25 de Abril. Os portugueses lembram-se bem da rivalidade entre Mário Soares e Álvaro Cunhal. Mas o pós-25 de Abril foi marcado também por rivalidades violentas entre os pequenos partidos de extrema esquerda, e entre estes e o PCP. Nesse sentido, a formação do Bloco de Esquerda por Francisco Louçã, Luís Fazenda e Miguel Portas foi admirável. Conseguiram ultrapassar as divergências típicas das esquerdas radicais para formar um novo partido.
Mas os conflitos entre as esquerdas radicais continuaram, sobretudo entre o PCP e o Bloco, mas também entre o PS e os partidos à sua esquerda. Mesmo o período de tréguas entre 2015 e 2019 não permitiu uma coligação de governo. Compare-se, por exemplo, com o que se passa na direita, onde as coligações entre o PSD e o CDS são naturais.
Depois das últimas eleições, os conflitos entre as esquerdas vão regressar, e em força. As relações entre o governo socialista e o PCP e o Bloco vão ser complicadas e difíceis. Os conflitos entre comunistas e bloquistas vão ser muito duros e sem tréguas.
Mas as últimas eleições trouxeram outra novidade. Além de crescerem, as esquerdas fragmentaram-se. Em circunstâncias normais, o crescimento eleitoral evita a fragmentação. Não o fazendo, a fragmentação torna-se a questão central. Pode mesmo dizer-se que a divisão, e uma divisão acentuada, descreve a situação das esquerdas em Portugal.
O PS não chegou à maioria absoluta (voltará alguma vez a conseguir uma maioria absoluta?). O PCP desceu e o Bloco não conseguiu subir. O PAN aumentou a sua votação e é uma ameaça irritante para o PS e para o Bloco. O eleitorado do PAN deveria ter votado no PS ou no Bloco. Mas não votou, o que mostra os limites de crescimento dos socialistas e dos bloquistas.
Além do crescimento do PAN, apareceu o Livre, uma dissidência do Bloco. Só tem uma deputada, mas o Bloco começou, há cerca de duas décadas, com dois deputados. Não tenho qualquer dúvida. O crescimento do PAN e a eleição da deputada do Livre foram notícias péssimas para o Bloco e para o PCP (o PAN expôs a fraude dos Verdes, na verdade parte do PCP).
Os próximos anos serão também marcados pelos confrontos entre as várias tribos das esquerdas radicais, e entre estas e o governo socialista. Tal como no seminário da LSE há mais de 20 anos, vou observar com atenção e divertimento.