1 Há muito tempo li uma frase de Virginia Woolf que me interpelou tanto que desde então me sirvo dela como um mandamento e uma inspiração. Dizia a escritora que “nada acontece até ser contado”. De facto, que seria das coisas da vida e das coisas do mundo, sem os contadores?
Ora então dias após ter visto a entrevista do Papa Francisco, Paulo Portas perguntou-me com um decidido “isto vai ser publicado, não vai?”. Não tinha pensado nisso, não tinha aliás pensado em mais nada senão em ser capaz de estar a altura de me sentar diante do sucessor de S. Pedro, numa sala do Vaticano. Uma vez a entrevista feita, achava que já tinha pensado tudo.
Não tinha. E foi então que ao mesmo tempo surgia também em cena o João Amaral a falar-me de fazer um livro e a evocar editores e foi então que depois entrou em cena a Guilhermina Gomes. E de repente estava ali um quarteto improvável que ninguém juntara e que sem nunca falar entre si a 4 ou sequer a 3 estava disposto para este livro. O papel de cada um foi muito diferente, o empenho, o mesmíssimo.
Parti em dúvida para a empreitada: uma coisa era a televisão, outra um livro. Quando porém li pela primeira vez a entrevista – isto é, atendendo apenas às palavras – percebi de imediato como ela era quase como um rio a correr… O que a televisão tão bem captara, deslizara afinal inteiro e intacto para o papel, com a mesma panóplia de momentos: momentos de reflexão, de fé, de sanção, de anúncio, de luz, de promessa e desafio. Mas também momentos de humor e também momentos de grande surpresa.
O que é outra maneira de dizer que não se podia deixar de meter mãos à obra. E fez-se o livro. Deixando o registo deste Papa a falar para Portugal, para a sua Igreja, para os portugueses, para todos nós. Muito particularmente para os jovens que o acolherão em Agosto de 2023, na Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa. E deixando também o contributo para um retrato de alguém que de imediato percebemos que nos irá surpreender. É que por mais que tivesse mil vezes antecipado como era o Papa Francisco, como se desenrolaria a conversa onde tudo o que sabia era que a minha responsabilidade teria sempre que ser maior que a emoção, fiquei a anos luz da realidade. E a realidade foi antes do mais a descoberta de uma proximidade invulgaríssima, servida por um sorriso logo aberto, a simplicidade, o afecto, uma genuína curiosidade pelo outro, a surpreendente ausência de pressa. E o humor, claro: não confessou Francisco que rezava todos os dias a um santo da sua predilecção para nunca perder o humor?
2 A convivência logo gerada ali na Casa da Santa Marta antes e depois da entrevista, foi tao particular – tão amigável, natural, aberta, risonha – que de repente, à despedida, me passou pela cabeça convidar o Santo Padre para ir jantar connosco nessa noite ao Transtevere: parecia-me impossível que não houvesse prolongamento. Mas pareceu-me possível que ele tivesse aceite. Felizmente para o Santo Padre não houve nem uma coisa nem outra: nem prolongamento, nem jantar…
Voltando à entrevista: ia ela nem sequer a meio quando me apercebi que se criara um ambiente. Ou melhor, que fora o próprio Papa que criara esse ambiente, esse clima onde a conversa fluía, fluía, na proximidade, na substância, na verdade.
Servida sobretudo – e aqui chego à essência – por um fecundo caminho religioso, uma notável solidez teológica, uma indiscutível autoridade, uma decisiva capacidade de reformar. Falo de sabedoria, essa aprendida e depois amadurecida ao longo da sua larga experiência como operário de Cristo. Encontrei um pastor que sem nunca se afastar da disciplina institucional, sabe o que fazer nas marés de luz, ou de esperança como nas de aflição ou sanção. Conhece umas e outras e é por entre elas que conduz e apesar delas que acredita. Não esconde a actual crise da Igreja mas troca a perturbação pelo Espírito Santo, que tanto me evocou. Compreende os diversos ritmos, da Igreja, acolhe os seus distintos andamentos. Ama a juventude que ele desafia a transportar consigo de promessa um melhor mundo ; percebe a fulcral importância do Sínodo com o qual esteve sempre tão comprometido quanto empenhado. Elogia a condição feminina numa das mais justas e luminosas homenagens à mulher ouvidas no seu pontificado.
“A Igreja é feminina” voltou a dizer aqui. E noutro passo, esta frase admirável: “uma mulher nunca abandona o que está perdido”.
Resumo da melhor forma citando o Padre Vasco no Prefácio, “as respostas do Santo Padre são interrogações para nós”.
3 Foi enfim o encontro com um latino-americano chamado Jorge Bergolio que, na primavera de 2013, mostrou ao mundo crente e não crente que Francisco o Papa não seria incompatível com Bergolio o jesuíta.
E continuaria na Santa Sé o que sempre fizera na sua Argentina natal: levar os frágeis e fracos pela mão. Numa igreja que ele sempre quis “em saída” e fazendo dela um “hospital de campanha”. Só perceberemos esta personalidade extraordinária se também percebermos que Francisco, o Papa, nunca se poderia separar de Bergolio, o Jesuíta. O pontificado teria obrigatoriamente de juntar os dois. Um e outro servem o mesmo: Deus e a Igreja.
Dizem alguns que Francisco desconcerta? Desnorteia? Separa? Divide? Não estou tão certa. Do que estou certa é que Cristo quando cá esteve não fez outra coisa. E que dois mil anos e tantas marés depois a Igreja também cá está.
Adaptação do discurso realizado na apresentação do livro “Francisco – O Caminho”