1 Inexcedível e responsabilizante: que vai a Igreja fazer com a herança da Lisboa 23? A ressaca da surpresa não ilude a pergunta: daqui em diante, o quê?

Falo de ressaca – a palavra é feia mas é disso que se trata: a exigência que cabe à Igreja após ter testemunhado o que ocorreu em Portugal. Como assimilar e lidar com tudo isso? Crentes ou não crentes, não importa. A dimensão destes dias vividos no “terreno” da Jornada Lisboa 23, ou apenas vistos da janela da televisão, foi de tal forma avassaladora que pode amaciar fronteiras religiosas ou porventura esbater pertenças a territórios mais desconhecidos da fé. A escolha do bem sobre o mal, da paz sobre a guerra, do amor sobre a acidez do acinte, da responsabilidade sobre o egoísmo é um repto à humanidade, mas começa por ser o repto incomparável do cristianismo. Por ele foi semeado e por ele firmado o claríssimo compromisso com essas escolhas. Foram elas que marcaram ontem os passos de Cristo quando aqui esteve, são elas que guiam hoje o Francisco que aí está: as escolhas têm dois mil anos e chamam-se Evangelho.

2 Primeiro vimos os jovens e a presença e a proximidade do Santo Padre com eles. A imagem de marca deste latino- americano sucessor de Pedro confundiu-se eloquentemente com a alegria empenhada de peregrinos e voluntários. O contágio entre uns e outro foi mútuo e permanente. Foi esse invisível elo – genuíno e omnipresente desde 2013 – que muito naturalmente levou Francisco ao cerne da realidade juvenil de hoje: as suas intervenções, no Parque Eduardo VII ou no Parque Tejo, foram invariavelmente reconduzidas ao concreto dos quotidianos da juventude de 2023 que ele não deseja “destilados”. Outro exemplo disso foi a espantosa Via Sacra cujas 14 estações refletiam o que pode perturbar ou amedrontar o presente da juventude mundial no turvo e incerto mundo de onde ela é. A resposta só pode ser comprometida e portadora de esperança. Risco, audácia, coragem. “Não tenhais medo”, disse o Santo Padre por sete, oito, dez vezes. Ele sabe: os jovens são o fortíssimo tronco da esperança; representam a garantia possível da transformação do que está, naquilo que pode passar a estar. Por isso Francisco lhes pediu que se apressassem.

3 Também houve Francisco, o Chefe de Estado (num dos meus discursos de eleição, numa semana de eleição). Forte, forte… Abanou as lideranças políticas, reivindicou-lhes mais: mais estado social, mais empenho na erradicação da pobreza; menos vergonha no desnível entre o condomínio do favorecido e a favela do excluído; menos indiferença a quem chega dos mares. Mais acerto político na navegação da UE – continente em guerra, quem o anteciparia neste ano da graça de 2023? Mais energia na concertação pela paz. A mochila das lideranças é cada vez mais pesada, os políticos cada vez podem menos com elas.

Depois houve o Chefe da Igreja a falar para dentro dela, num mosteiro repleto. As simbólicas paredes dos Jerónimos ouviram o Sumo Pontífice chamar os seus às responsabilidades que lhes cabem neste tempo e neste lugar (e foi claro que algumas delas nada tinham que ver com o de novo tão propagado caso dos abusos sexuais). Severo na crítica, detalhado na preocupação, exigente no guião. Pediu mais, ia sempre pedindo mais. Mas não terá feito afinal mais do que simplesmente pedir o Evangelho.

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Ah e houve o Papa que desde que visitou Fátima há uns anos ficou mais “mariano”. Ainda o ouço a recordar esse momento: “Eu sou mariano, gosto muito da Virgem mas em Fátima senti outra coisa. Fátima deixou-me mudo, não sei quando tempo estive ali, nem me apercebi…”. Agora que Francisco lá voltou a rezar um terço, terá ficado ainda mais devoto. Mas foi também lá que Francisco não iludiu o lugar da cruz, do sofrimento, da doença, da fragilidade. Fê-lo através dos testemunhos ouvidos, fê-lo ouvindo rezar o terço, em voz alta, alguém portador de enorme deficiência. Um grande momento lembrando o que começa a estar esquecido.

4 Foram dias surpreendentemente irrepetíveis – na abundância fértil das mensagens do Papa, no belíssimo sopro estético que as envolveu e divulgou, no ardor e fulgor do empenho dos jovens. Uma espécie de estado de graça de longa duração. Era como se de algum modo estivéssemos estranhamente num “outro mundo”. Um lugar exterior ao lugar perigoso e feio onde vivemos. Foi profundo, sendo alegre; foi simples sendo denso; foi celebratório sem festivalices; foi substancial sem nunca pesar; foi sempre próximo sendo sempre respeitoso. E foi energicamente concreto.

Ficou um guião. Francisco costuma deixar uma assinatura muito legível no que diz e escreve, em Lisboa também deixou: há um receituário para cada desafio. O Papa não é um mero desafiador, desafia-nos porque precisa desse instrumento. Sabe que há que interromper sonos prolongados, letargias paralisantes, fechamentos irredutíveis, conservadorismos encalhados na sua própria esterilidade; tanto quanto reivindicações obstinadamente semeadas pelo ar deste tempo, muito mais do que pela compaixão ou da própria responsabilidade da fé. Ouvimo-lo sancionar “conquistas” fracturantes, condenar o poder assassino da realidade virtual, abrir-nos o leque dos embustes que nos podem iludir. Abraçou “todas” as sua ovelhas, onde quer que estejam, de que “lado” sejam: a umas pedirá que não acelerem tanto, a outras que acelerem mais e a ambas que não persistam no pedir do “impossível”.

Numa das celebrações do Parque Eduardo VII, numa conversa televisiva com a minha colega Alberta Marques Fernandes veio à tona das suas palavras o termo “revolucionário”. Apeei-me do termo – é ardiloso e ambíguo – e estacionei no combate, esse sim desconcertantemente revolucionário, deste Papa em prol de uma nova igreja. Próxima e misericordiosa. Mais compadecida que altiva, mais presente que distante, mais aberta que defendida em corredores insonorizados aos gritos do mundo. Humildade, proximidade, consolo. Perdão. Compadecimento. Pertença e porto de abrigo de “todos, todos, todos” por mais perturbador e novo que isso seja. Lançando redes mais longe, pescando mais ao largo. Por mais difícil que esteja o mar, por mais dura que se torne a pesca. O que é isto senão um anúncio revolucionário?

Admito – e observo – que muitos desejariam ter em Francisco um progressista decidido na satisfação das agendas contemporâneas que pedem tudo e já. O que me surge porém como progressista no seu ofício de pastor é o modo como ele age e interpela através do Evangelho. E aquilo que sem desfalecimento pede que se faça em seu nome. Possa a Igreja – e a nossa também – partir apressadamente ao largo.

5 Sabe uma coisa, caro leitor? Pela segunda vez – a primeira foi no Vaticano há uns meses – tive como que uma súbita “certeza” de que se Cristo andasse por cá e tivesse vindo a Lisboa por estes dias, era assim tal e qual que ele teria feito e isto mesmo que teria dito.

PS: Não posso deixar de felicitar quem levantou esta Jornada, a Igreja desde logo, fazendo de uma ideia uma realidade que nos ultrapassou por mais de um motivo; felicitar quem transformou um projeto numa sucessão de extraordinários passos  – exaltantes uns, silenciosos outros, enérgicos outros ainda, portadores de espanto e maravilha, todos eles. (Destaco a Via Sacra, tão substancial no seu conteúdo quanto deslumbrantemente interpeladora no modo como se deu a ver). Recebam os seus “encenadores”, que nunca vi, os meus mais gratos e comovidos parabéns. Evoco a dedicação sem limite de dezenas de milhares de voluntários, a Igreja está viva através deles e com eles.

Como cidadã agradeço ao Executivo ter integrado a troika Igreja/Governo/autarquias, mas como os últimos são os primeiros, e como lisboeta, orgulho-me sobretudo de Lisboa e de quem a gere, Carlos Moedas e a sua equipa. Foram capazes, responderam à chamada, estiveram à altura do “impossível”: quem acreditava ou metia um euro na aposta de uma Jornada portadora de assombro? Generosa, densa, participada, organizada, ritmada, surpreendente, do primeiro minuto ao último?