É impressionante como o chamado “pensamento de manada”, ou a recusa em pensar de um modo independente, domina a análise e o comentário político. A propósito das eleições em Itália (e também na Suécia), quase todos os cronistas falam do “neo-fascismo”, do “pós-fascismo”, da “extrema direita” sem pensar sobre o que estão a escrever e sobre a validade e o rigor dos conceitos que usam. Escrevem isso porque os outros que “pensam” como eles também o fazem. Parece que escrevem com fórmulas copiadas e gastas em vez de argumentos bem pensados. Chegámos a uma pobreza intelectual que mete dó. 

Parece óbvio que o eleitor comum (em cada vez mais países europeus) percebe muito melhor o que é o fascismo do que os comentadores. A Europa não ficou subitamente cheia de fascistas. Talvez fosse mais útil tentar perceber esse eleitorado do que simplesmente tentar assustá-lo com a palavra fascista. Não funciona. Além disso, a vulgarização do termo fascismo é terrível: quem se preocupa verdadeiramente com a liberdade, a justiça e a democracia não vulgariza uma ideologia que assassinou milhões de pessoas e destruiu países inteiros. Se não querem aprender, sejam pelo menos responsáveis.  

Obviamente, Meloni não é fascista. É uma conservadora e nacionalista, com algumas semelhanças com os conservadores britânicos. Ao contrário dos comunistas portugueses, na guerra da Ucrânia está ao lado de quem luta pela liberdade nacional e pela democracia, contra o imperialismo militar russo. Sim, defende “Deus, pátria e a família.” Mas isso não significa ser “fascista”. A esmagadora maioria dos Católicos, dos patriotas e daqueles que consideram a família como o elemento central das nossas sociedades não é fascista. O facto de Mussolini ter usado a mesma expressão, como alguns notaram, não serve para colocar Meloni na família fascista. Stalin também usava a expressão “classe trabalhadora”, e isso não significa que todos os socialistas e sociais democratas que também a usam sejam comunistas.   

Aliás, vale a pena recordar uma data: 20 de Setembro de 2019, 80 anos depois do início da Segunda Guerra Mundial. No Parlamento Europeu, o grupo dos Conservadores, do qual o partido de Meloni faz parte, apresentou uma resolução a condenar os crimes dos totalitarismos comunista, fascista e nazi. Mais de 80% dos deputados europeus votaram a favor da resolução. No caso dos representantes portugueses, o PS, o PSD, o CDS e o PAN votaram a favor. O PCP e o Bloco votaram contra. Na questão política mais importante da história europeia do século XX, democracia vs totalitarismos, o PCP e o Bloco votaram ao lado dos totalitarismos, e o partido de Meloni votou ao lado das democracias. No editorial de segunda feira, o Director do Público mostra uma grande preocupação com a “extrema direita” dos Irmãos de Itália, falando ao mesmo tempo da “normalização” do PCP. Em que mundo vive este senhor? Até onde se pode ir para negar a realidade?  

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Também é verdade que no passado Meloni foi dura com a União Europeia. Mas criticar Bruxelas ou ser eurocéptico não é equivalente a ser fascista. A União Europeia foi formada por países democráticos, pluralistas e com sociedades abertas. É inteiramente legítimo atacar a União Europeia. Nas democracias liberais, nada está acima das críticas. Além disso, as críticas de Meloni à Europa devem ser entendidas no contexto italiano.

Há problemas muito sérios com a democracia italiana. Nem é preciso recuar à profunda corrupção da Primeira República, dominada pelos socialistas e os democrata-cristãos, e ambos pró-europeus. Basta ir a 2008, o último ano em que a Itália viu o vencedor das eleições chegar a PM. É verdade que nas democracias representativas, por vezes, os PMs não são os vencedores das eleições (muito provavelmente, vai acontecer isso na Suécia). Mas 14 anos sem um vencedor das eleições a PM é um problema sério. O que sentiriam os portugueses se isso acontecesse em Portugal?

Em 2011, no meio da crise financeira, Berlusconi foi deposto por Berlim e Paris, e substituído por Mário Monti. Os seja, Merkel e Sarkozy, na altura, substituíram os eleitores italianos. Desde aí, a Europa tornou-se menos popular em Itália, o que não surpreende. E muitas críticas são dirigidas ao domínio da Alemanha e da França e não à União Europeia, o que é diferente. Após as eleições de 2013, o líder da coligação de esquerda, Bersani, não conseguiu formar governo (não tinha maioria absoluta), e foi Lette que chegou a PM, fazendo uma coligação com Berlusconi (que credibilidade tem agora Lette para chamar “neo fascista” a uma coligação onde está um seu antigo aliado?). Em 2015, num golpe dentro dos Democratas, Renzi substituiu Lette como PM, daí o ódio entre os dois e a impossibilidade de terem feito uma coligação de centro esquerda contra a direita liderada por Meloni. Nas eleições de 2018, as chamadas eleições dos populismos, o vencedor foi a 5 Estrelas, com a Liga em segundo lugar. Mas o PM foi um independente, Conte, porque ninguém confiava no líder da 5 Estrelas, Di Maio, ou no líder da Liga, Salvini. Em 2021, Conte foi substituído por outro PM não eleito, Draghi.

Nada tenho contra Draghi, foi um grande Presidente do BCE e espero que seja o próximo Presidente italiano (e o mais rapidamente possível), mas valorizo acima de tudo a democracia. Por isso, acho que é muito bom para a democracia italiana que a vencedora das eleições seja a próxima PM de Itália. 

Também celebro que pela primeira vez a Itália tenha uma mulher como PM. Como estariam os nossos comentadores a celebrar se a esquerda italiana tivesse eleito uma mulher como PM. Mas a esquerda italiana não gosta de mulheres líderes. Desde 1945, o PS italiano e depois o Partido Democrata nunca tiveram uma mulher como candidata a PM. E a direita tem sido igual, com a excepção de Meloni agora.    

Mas, apesar das celebrações iniciais, não estou optimista em relação ao futuro governo italiano. Julgo que será mais moderado do que muitos julgam, e Meloni e Draghi poderão mesmo fazer uma aliança que eleve o ainda PM a Presidente italiano. Mas é a primeira vez que os Irmãos de Itália vão governar e convém que haja um escrutínio apurado sobre o governo. Sobretudo, convém prestar atenção a tentações para violar o estado de direito e a independência da justiça, mas isso aplica-se a muitos partidos políticos. Também será importante observar se o governo irá contribuir para uma maior polarização em relação à oposição democrática. Se é um enorme disparate chamar fascista a Meloni, também será um grande erro se o futuro governo de Itália diabolizar a oposição. 

Mas, pior ainda, são os aliados de Meloni, Berlusconi e Salvini. Não são de confiança. Serão os maiores adversários de Meloni e passarão a vida a conspirar contra ela. Berlusconi é um sexista sem princípios nem maneiras que nunca aceitará uma mulher como líder. Salvini não perdoa ter sido ultrapassado por Meloni. O melhor que poderia acontecer a Meloni seria a substituição de Salvini na presidência da Liga por alguém disposto a trabalhar de um modo construtivo com os Irmãos de Itália. Mas desconfio que a democracia italiana continuará na mesma: incapaz de resolver os problemas mais sérios que o país enfrenta. Isso é que é grave. Esqueçam o fascismo.