Imaginem o seguinte. Antes de 1974, o presidente da câmara de Paris enviava os dados pessoais, a residência e os seus contactos, de Mário Soares e de outros exilados portugueses em França para o governo do Estado Novo. Fernando Medina e a Câmara de Lisboa tiveram basicamente uma atitude semelhante. Não vale a pena argumentar que Mário Soares era um dirigente político e que os russo-portugueses, agora denunciados, são simples cidadãos (sabemos que os socialistas se sentem acima dos comuns mortais, mas há limites). Os direitos humanos são iguais para todos.

Deixando de lado o rigor académico, no sentido do debate político corrente, o regime de Putin é fascista. Como todos os “fascismos”, goza das suas originalidades: uma mistura do xenofobismo russo com heranças do totalitarismo soviético. Dito de outro modo, o poder absoluto do Czar, o ódio ao estrangeiro, e as práticas de controlo da sociedade e de assassinato dos adversários políticos herdados da KGB.

O regime de Putin assassina ou prende os líderes da oposição e os candidatos presidenciais que ousam concorrer contra o candidato oficial. Invade e ataca militarmente países vizinhos, como a Ucrânia e a Geórgia. Anexa contra o direito internacional regiões de outros Estados soberanos, como aconteceu com a Crimeia. Assassina cidadãos russos residentes em países europeus, com ataques químicos. A literatura sobre o funcionamento do regime de Putin é vasta e pode ser lida por Fernando Medina e pelos seus assessores. Foi com este regime fascista que a autarquia liderada por Fernando Medina partilhou dados de cidadãos portugueses, de origem russa, que vieram para Portugal para poderem viver numa democracia que deveria respeitar os seus direitos fundamentais.

Tudo indica que a autarquia de Lisboa violou o direito da proteção de dados individuais, mas a questão não é apenas jurídica. É sobretudo uma questão de responsabilidade política. Não vale a pena, no caso de haver uma suspeita sobre o incumprimento da lei, Medina refugiar-se atrás da presunção de inocência. A questão jurídica ficará para os tribunais. Mas a questão política não desaparece e é a mais importante.

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O Governo socialista pretende gozar com grande solenidade o meio século do 25 de Abril, de tal modo que as celebrações se estendem dos 48 aos 52 anos. O que significa que, aparentemente, o triunfo da democracia é um acontecimento histórico para o nosso Governo. Mas será mesmo? Ou, para o PS, mais importante que o respeito pelos valores democráticos é o exercício do poder?

Compete a Fernando Medina dar-nos a resposta. A autarquia que ele lidera colaborou com um regime fascista e foi incapaz de proteger os direitos fundamentais de cidadãos portugueses. Se Medina colocar os valores democráticos acima de qualquer outra consideração política, só tem um caminho: a demissão. Se, pelo contrário, o poder for mais importante do que o respeito pela democracia e pelos direitos humanos, continuará a exercer o seu mandato.

P.S.: Pedro Adão e Silva acha que não há qualquer incompatibilidade entre ser nomeado pelo Governo socialista para um cargo político e continuar a comentar na televisão pública as decisões e as políticas do Governo que o nomeou. Como é que uma pessoa que vai organizar as celebrações dos 50 anos de democracia em Portugal não entende o óbvio conflito de interesses? Se entende, tal como Medina, coloca o seu poder e os seus interesses à frente dos princípios fundamentais de uma sociedade democrática e pluralista. Ambos mostram que o PS é neste momento a maior ameaça à democracia em Portugal. Fazem os dois parte de um projeto de poder absoluto e hegemónico. No fundo, não passam de apparatchiks partidários.