A primeira vez que Joe Berardo deixou de pagar os juros à CGD foi em Novembro de 2008. Já tinha falido o Lehman Brother’s e o BPN estava nacionalizado para não falir. Face ao incumprimento, a Caixa podia ter executado a garantia que tinha, as acções do BCP, vendendo-as em bolsa. Fá-lo-á mais tarde, a partir de 2011. Nessa altura não o fez. Porquê?
“Foi um erro tentar acomodar o que a Caixa e outros bancos pediram, para não vender as ações dadas como garantia”. São palavras de Joe Berardo na comissão parlamentar de inquérito à CGD. Ainda segundo o que afirmou, a razão apontada para não executar as garantias é que podia estar em causa o sistema financeiro português. Revela ainda Joe Berardo que aceitou essa decisão dos bancos com uma condição: “desde que não fosse considerado responsável.” E aparentemente é isso que está a fazer: não ser o responsável pela decisão que a CGD tomou em 2008.
Em vez de vender as acções do BCP, para recuperar nem que fosse parte da dívida, a CGD preferiu, em 2008, com o BCP e o então BES, reestruturar a dívida. Deu a Berardo 18 meses sem pagar juros e aceitou uma garantia muito original: títulos da Associação Colecção Berardo. Sabendo perfeitamente que não estava a penhorar a colecção de arte moderna mas sim títulos de uma associação – que em regra não tem títulos. E sabendo ainda que a execução dessa garantia esbarraria num contrato com o Estado português válido até 2017. Basicamente, se Berardo entrasse de novo em incumprimento – como aliás aconteceu logo que terminou o prazo de capitalização de juros – o penhor sobre os títulos da Associação era um “faz de conta”.
Foi esse “faz de conta” que se viveu na passagem do século XX para o século XXI e que só agora começa a chegar ao fim. Um “faz de conta” em dois actos. No primeiro acto finge-se que há banqueiros e empresários de sucesso que afinal só têm dívidas. No segundo acto os bancos tentam disfarçar as perdas com as dívidas desses banqueiros e empresários construídos com crédito.
No processo das máscaras que iam construindo, os bancos permitiram que esses grandes devedores fizessem desaparecer tudo o que pudesse ser penhorado.
O mediatismo de Joe Berrardo e o desastre que foi a sua audição geraram uma onda de revolta e criticas que é compreensível. Mas Berardo está longe de ser o único ou mesmo o pior caso. Tem, pelo menos, uma colecção de arte que atrai visitantes e turistas.
Basta ler as revistas Visão e Sábado da última semana para perceber que os bancos permitiram que alguns dos grandes devedores fizessem desaparecer todos os seus activos. E fizeram-no de forma tão profissional que, a crer na incapacidade dos bancos, parece impossível reverter as transferências e vendas que fizeram esses grandes devedores. Um pequeno empresário tem medo de vender os seus bens ou das suas empresas, para evitar a execução dos bancos, porque sabe que pode ver um tribunal a reverter essas transacções. Os grandes empresários fizeram-no aparentemente com toda a impunidade. Há excepções, claro.
No caso de Joe Berardo a CGD (tal como o BCP e BES) ou foi incompetente ou foi cúmplice, ou ambas as coisas. E a história começa com cumplicidades na guerra pelo controlo do BCP em 2006 e continua até hoje numa mistura de cumplicidades e incompetências.
Berardo, em contrapartida, tem sido muito competente a defender os seus interesses. Não se pode é, como aliás disse Berardo na intervenção inicial lida pelo seu advogado, deixar de avaliar as responsabilidades de governos e do Banco de Portugal assim como a “permeabilidade ou não dos órgãos sociais da CGD a outros interesses, nomeadamente políticos”. E também não esquecer que são as nossas leis e a nossa justiça que abrem a porta à impunidade destes grandes devedores.