Como muita gente, e mais ou menos por acaso, assisti à integralidade da audição de Joe Berardo no Parlamento, e a impressão foi suficientemente forte para me permitir o inevitável artigo sobre o caso. Não é uma maneira de tentar compensar uma tarde perdida para actividades mais nobres, como ler ou ouvir música. É que raras vezes vi algo que revelasse tanto sobre nós, sobre a nossa sociedade, sobre o modo como nela se ganha relevo e importância e até sobre o curioso papel que a “cultura” tem por estas paragens. O grosso dos comentários produzidos sobre a audição tendeu a confirmar as intuições mais imediatas.

Fio-me nas aparências, é claro. Mas, a acreditar nelas, não há como não concluir o óbvio: Joe Berardo é uma personagem grotesca. É uma personagem grotesca da cabeça aos pés, da maneira como se veste ao seu muito palpável analfabetismo, passando pelo indisfarçável auto-comprazimento que ostenta relativamente à sua capacidade de, com a ajuda de uma equipa de especialistas, tornear a lei em seu benefício próprio. De tudo isso resulta a imagem de um pobre-diabo muito contente com as suas habilidades e que obtém uma espécie de satisfação narcísica primária em as publicitar. A partir de uma certa estupefacção inicial (admito), aquela audição mergulhou-me num sentimente de hilariedade incontida. Ao ponto de me parecer inexplicável não se ouvir o formidável coro de uma gargalhada colectiva por parte dos deputados presentes a cada vez que Berardo abria a boca, ou quando se calava por indicação do seu advogado.

Mas não se ouviu. O PS dispôs de um senhor muito soft e respeitoso, o PC de um jovem tímido, o PSD de outro senhor respeitoso e de Duarte Marques, que se deixou irritar. Restavam as duas pessoas que normalmente funcionam bem nestas comissões: Mariana Mortágua e Cecília Meireles. Mariana Mortágua, foi pena, não resistiu à quase inocente falta de vergonha do outro. Nitidamente, aquilo era demais para ela, e acabou, acabrunhada, a deitar a toalha ao chão. Cecília Meireles, é verdade, esteve muito melhor. Fez, por exemplo, as perguntas que levaram o narcisismo de Berardo a revelar a ilegalidade daquela reunião feita à revelia dos credores, que blindou a sua colecção do CCB face aos bancos. E não escondeu por um só instante a repugnância que o personagem, na sua infinita mediocridade, lhe provocava, desviando dele o seu olhar mal acabava uma pergunta.

Alguma inteligência Berardo terá. Toda a gente possui uma qualquer forma de inteligência, mais ou menos perceptível aos outros e vocacionada para matérias particulares, que pode perfeitamente conviver com o mais total embrutecimento noutras questões. Mas suponho que para enriquecer de certa e determinada maneira (não pagando aos bancos, por exemplo) a inteligência não precisa de voar muito alto. Como não precisa de voar muito alto para ter acesso às pessoas certas no momento certos. As pessoas certas foram, por exemplo, António Mega Ferreira, no CCB (“aquele homem que publica muitos livros”, explicou este nosso apaixonado pela arte), e, é claro, o fatal Sócrates, o anti-Midas por excelência, que em tudo o que toca faz desaparecer o ouro. Fora essa inteligência espúria, reina aparentemente naquela cabeça o mais intenso vazio que a humanidade conheceu.

Face a isto, as indignadas acusações de “desplante” do primeiro-ministro e a reprovação do Presidente da República falham parcialmente o alvo. Berardo será tudo menos um génio do mal. Um podre-diabo, sim, um pobre-diabo precariamente alfabetizado (nem o que “altruísta” quer dizer sabe – e isso literalmente e não moralmente), que ascendeu numa sociedade onde a literacia é também problemática e onde grassa alegremente a corrupção, fomentada, entre outras coisas, pelo conúbio da política e da banca. A indignação é um sentimento que, para ser justificado, tem forçosamente de dar rapidamente lugar à acção. Particularmente quando ela se manifesta em pessoas que certamente sabiam de cor e salteado as tropelias passadas do objecto da sua indignação. Toda esta indignação veemente cheira a mal-estar culpado pelo exibicionismo alheio e a pouco mais do que isso. Diz mais respeito ao dizer do que ao fazer.

Num sentido importante, Berardo é absolutamente trivial. Até no prestígio do amor pela cultura (“a arte, para mim, é a minha vida”), que conjugou as graças dos do costume. Um indivíduo que encontrou uma sociedade em que determinados comportamentos são tacitamente, quando não explicitamente, considerados normais e que os acha, quanto a ele, de uma normalidade à prova de bala. Se não lhe acontecer nada, ou se pouco lhe acontecer, isso provará muito mais sobre a nossa sociedade do que sobre o suposto génio maligno do Berardo em questão. Se algo de grave for sobre ele decidido, isso será sinal que, no seu patético orgulho em ser quem é, se terá enganado. Duvido que se tenha enganado.

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