Nestes dias, Theresa May deve andar à beira de um ataque de nervos. Nunca tendo sido defensora do Brexit, caiu-lhe no colo um dos mais delicados momentos políticos que a Grã-Bretanha enfrentou nas últimas décadas. Não terá sido a negociadora mais brilhante, mas, verdade seja dita, tinha tudo contra si.
Especialmente, os três inimigos deste processo: uma União Europeia inflexível, que quer punir Londres pela sua ousadia; um Partido Conservador rancoroso, que prefere deitar tudo a perder do que ceder à Europa; e um líder da oposição muito mais preocupado com o seu futuro político do que com os destinos do país.
Seria de esperar, caso imperasse a racionalidade dos interesses das instituições e do estado, que todos os envolvidos quisessem um soft Brexit. Mas todas as partes parecem demasiado ressentidas para que se chegue a um acordo razoável, seja para quem for. Senão veja-se.
Uma das partes, a União Europeia, está ressentida com o ultraje de ter sido abandonada. Durante décadas, ouvimos dizer, como argumento cabal do sucesso do projeto europeu, que nunca nenhum estado tinha sequer levantado a hipótese de sair deste clube de privilegiados. O Reino Unido ousou quebrar este protocolo, ainda por cima com a legitimidade do voto popular (o que tem muito que se lhe diga, mas isso já é outra história), e Bruxelas só aceitou um acordo em que Londres se mantém dependente da Europa – por tempo indeterminado – do ponto de vista económico, comercial, ambiental e mesmo em questões vitais para a soberania de um país, como as leis do trabalho. A liderança (leia-se o eixo franco-alemão, que ainda é imperativo) e a tecnocracia europeia mostraram a sua face mais negra: quando as coisas não rumam para o seu lado, os desafiadores têm de ser punidos. Sem concessões e sem misericórdia.
Outra das partes, o Partido Conservador, com uma longa história de divisão relativamente à relação com a Europa, está ofendido, e até certo ponto com razão. Afinal, May cedeu a um quase-não-acordo, em que a UE continua a ditar as regras de quase tudo o que é visto como essencial. A primeira-ministra britânica até pode ter conseguido acabar com a livre circulação de pessoas e remediar o problema da fronteira com a Irlanda. Mas para quem quer convictamente recuperar a sua soberania, o acordo que está em cima da mesa está fora de questão. De estado-membro, o Reino Unido passa a estado-dependente, o que significaria uma humilhação que os herdeiros ideológicos do isolacionismo esplêndido não podem aceitar. Sete ministros demitiram-se nos últimos dias e já se sabe que May vai ser alvo de uma moção de confiança. E a verdade é que esta não tem sido mais do que uma espécie de pivot de duas vontades irreconciliáveis. E até agora, não se vê no horizonte ninguém capaz de levar o barco a bom porto.
Finalmente, Jeremy Corbyn, líder do Labour. Os próprios Tories, ao insurgirem-se em número significativo contra o acordo, atiraram para o principal partido da oposição o ónus da sua aprovação no Parlamento. Corbyn terá sido um eurocético (ainda que não um brexiter), mas agora é, acima de tudo, um oportunista político. Tem usado e abusado da ambiguidade, dizendo aquilo que pode levá-lo à popularidade e ao poder. Recentemente, pode deduzir-se que a sua posição, que deverá ser seguida pela maioria dos trabalhistas, é a de votar contra o acordo e exigir eleições antecipadas. O líder afirma defender posições votadas em congresso partidário, mas a verdade é que o seu comportamento demonstra que o que ele defende é o seu próprio interesse.
Esta semana não trouxe nada de positivo para ninguém. Mostrou que o eixo franco-alemão ainda pode ter um ascendente importante nas decisões da União, mas devia ser mais prudente. A popularidade e aceitação de Emmanuel Macron está pelas ruas da amargura e a saída anunciada de Angela Merkel coloca a Alemanha numa posição de profunda fragilidade. As crises na União Europeia têm-se sucedido na última década e as suas relações com partidos e populações dos estados-membros não estão na sua melhor fase (para usar um eufemismo). Uma saída limpa do Reino Unido seria o melhor que poderiam desejar, até para garantir acordos de comércio convenientes para ambas as partes. Apesar disso, o orgulho ferido falou mais alto.
O acordo que May conseguiu é mau para a Grã-Bretanha. As probabilidades de aprovação no Parlamento, em dezembro, são fracas. Nem parte dos conservadores, nem a maioria dos trabalhistas, nem partidos menos expressivos, como os nacionalistas escoceses ou os liberais, parecem dispostos a aprová-lo. Mais a mais, nada garante que May consiga manter-se muito mais tempo no poder. Também na Grã-Bretanha os últimos anos têm sido desastrosos. Os líderes apostaram tudo num jogo de roleta russa – o referendo de 2016 – e cerraram fileiras nas suas posições, sem pensarem convenientemente nas consequências. Esta semana mostrou que tudo o que podia correr mal correu mal. E que o pior pode ainda estar para vir.
Há quatro cenários possíveis: os advogados do hard Brexit ganharem um novo fôlego para imporem uma solução que lhes agrade (e que Westminster, sem alternativa, aprove); que se chegue a março sem acordo (uma opção de resultados imprevisíveis); que não haja possibilidade de entendimento e que se decida um novo referendo (o que é pouco provável); ou que haja eleições antecipadas onde, no meio de tanta crispação, tudo pode acontecer. Nenhum destes cenários transmite confiança nenhuma a ninguém (inclusivamente aos mercados).
Nem ninguém sai bem na fotografia: a intransigência europeia só legitima os seus críticos e dá argumentos aos seus inimigos; os conservadores apostaram as fichas todas num processo que não conseguiram controlar (estavam convencidos que ganhariam o referendo), nem tiveram competência para gerir; os trabalhistas levantam o véu sobre o que pior existe em política, que é porem os interesses próprios acima dos do país. Com este acordo ganham os populistas nacionalistas que se vão erguendo pelo continente fora. Afinal, este processo prova que algo vai muito mal na Europa, tal como ela está. No fim, perdem os cidadãos britânicos e europeus, que mais uma vez saem defraudados por quem os deveria representar e defender (aqui sim, intransigentemente) nos seus interesses.