A semana que hoje começa ameaça levar ao rubro o confronto sobre o Brexit na cena política britânica. A semana que passou já foi uma das mais quentes deste (demasiado) longo processo — devendo ser recordado que o referendo teve lugar em Junho de 2016, há mais de três anos.
Dois tipos de reacções tendem a responder a este penoso espectáculo: entre a maioria da opinião publicada, cresce o radicalismo na defesa entrincheirada de uma das partes contra a outra; entre a maioria da opinião pública, cresce o aborrecimento e a indiferença perante uma novela demasiado prolongada.
Compreendo o aborrecimento da opinião pública, de que até certo ponto partilho. E discordo da radicalização da opinião publicada, bem como, sobretudo, da bizarra radicalização entre as partes envolvidas. Além disso, todavia, creio que pode existir uma “terceira via”: procurar, com algum distanciamento, reflectir sobre os aspectos mais marcantes de todo este processo — que, convém apesar de tudo não esquecer, ocorre na democracia parlamentar mais antiga do planeta.
Um dos aspectos mais obviamente marcantes tem sido o comportamento do Parlamento. Há vários aspectos a considerar neste comportamento (a que voltarei adiante), mas o mais evidente reside na elevada frequência com que significativos números de deputados quebram a disciplina partidária e votam contra a posição dos seus próprios partidos. Isso ocorreu várias vezes no Governo da Sra. May e acabou de acontecer de novo na semana passada com 21 deputados conservadores — que o primeiro-ministro se apressou a afastar do grupo parlamentar Conservador.
Foi uma resposta bizarra e, em meu entender, mais ‘continental’ do que britânica. Imediatamente me trouxe à memória a palestra de Karl Popper em Lisboa, em Outubro de 1987, na Fundação Calouste Gulbenkian, no âmbito do ciclo de conferências “Balanço do Século” — promovido pelo então Presidente da República Mário Soares, sob coordenação de Fernando Gil. Foi um evento de grande intensidade, com mais de mil pessoas a escutarem em silêncio a vigorosa intervenção do velho filósofo, nessa altura já com 85 anos.
Não seria possível resumir aqui a riqueza subtil do argumento de Popper [o texto foi publicado no livro Balanço do Século, (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990, pp. 75-95) e, numa versão condensada, na revista The Economist, de Londres, de 23 de Abril de 1988, pp. 26-28].
Karl Popper recordou a sua crítica veemente às filosofias autoritárias de Platão, Hegel e Marx, que tinha celebrizado o seu livro de 1945, A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos (Edições 70, 2012). Basicamente, disse que todos eles definiam o melhor regime político com base na pergunta “Quem deve Governar?” Mas que essa pergunta era enganadora, sobretudo na versão que define a democracia como “governo do povo”. Popper observou que o chamado “governo do povo” não é concretamente exequível (nem desejável). E que a experiência das democracias liberais do Ocidente — fundadas na experiência da democracia parlamentar britânica oriunda da revolução de 1688 — não é a do “governo do povo”.
Popper argumentou em seguida que a democracia ocidental funda-se no princípio do Governo limitado pela lei, que presta contas ao Parlamento — o qual, por sua vez, presta contas aos eleitores. Não se trata por isso de saber quem deve governar absolutamente, mas de garantir que todos os governos podem ser afastados sem violência, sem derramamento de sangue, através de eleições livres. Esse é o fundamento das democracias ocidentais, herdeiras da revolução inglesa de 1688-89. E, basicamente, resume-se na soberania do Parlamento, que presta contas aos eleitores.
Em seguida, Popper argumentou que o sistema eleitoral mais adequado a este princípio geral era o sistema anglo-americano de círculos uninominais — por contraste com o sistema continental de listas partidárias. Aquele sistema uninominal permitia que cada deputado, mesmo sendo eleito como candidato de um partido, respondesse em primeiro lugar aos seus eleitores — e não à direcção do seu partido:
“Ele é pessoalmente responsável perante os seus eleitores. […] Este é o único dever e a única responsabilidade do representante parlamentar que têm de ser reconhecidos pela Constituição. […] Consequentemente, é seu dever abandonar o partido quando considerar que pode cumprir melhor o seu dever sem esse partido ou talvez com outro partido” […] Por contraste, num sistema eleitoral proporcional com base em listas partidárias, o dever moral do deputado não pode ser diferenciado do dever de obedecer ao partido em cuja lista foi eleito. O sistema proporcional em lista retira ao deputado o seu sentido de responsabilidade pessoal — para com a sua consciência e para com os seus eleitores”.
Por outras palavras, e voltando aos recentes comportamentos do Parlamento britânico: se levarmos Popper a sério, não há nada de chocante na elevada frequência com que significativos números de deputados quebram a disciplina partidária e votam contra a posição dos seus próprios partidos. De certa forma, o sistema eleitoral uninominal é isso mesmo que permite — e que, até certo ponto, favorece.
Neste sentido, a reacção “disciplinadora” do primeiro-ministro britânico — ao excluir do grupo parlamentar os deputados dissidentes — é uma reacção mais consistente com os sistemas continentais de disciplina das listas partidárias do que com o sistema britânico de responsabilidade pessoal em círculos uninominais.
De acordo com Popper, no entanto, existe apenas um outro detalhe: os parlamentares não devem depender do partido — mas têm de responder aos seus eleitores. E, neste caso concreto, eles têm de responder perante um referendo, constitucionalmente convocado pelo Parlamento, no qual 17,4 milhões de britânicos votaram a favor da saída da UE — a maior votação a favor de uma proposta singular na história secular da democracia britânica.
Argumentei na semana passada, e volto a argumentar aqui, que a única forma civilizada de superar esta tensão reside em realizar eleições. Não se trata de opor uma facção correcta (do Brexit e do primeiro-ministro) contra uma outra facção correcta (da maioria parlamentar anti-Brexit). Trata-se apenas de voltar a ouvir os eleitores. Esta é a tradição de 1688-89 que Popper defendeu — e funcionou lindamente, sempre que foi respeitada.