A adjetivação de uma droga de “leve” induz uma percepção distorcida das reais consequências de determinadas substâncias na saúde em geral. Relativamente à saúde mental, essa distorção é agravada pelo facto de, como habitualmente, o impacto nesta área ser menosprezado ou completamente ignorado.

Assim, julgo ser conveniente expor as considerações seguintes:

  1. Ao contrário do que acontece na língua inglesa, onde a palavra “drug” é usada indistintamente, na língua portuguesa existem duas palavras que discriminam e esclarecem as diferenças entre determinadas substâncias. Desta forma, “medicamento” designa um produto com propriedades terapêuticas, devidamente estudado, testado, aprovado, regulado e com indicações específicas, e “droga” refere-se a uma substância (legal ou ilegal) que, por força do seu abuso e/ou uso indevido, promove problemas graves de dependência física e/ou psicológica, com profundo impacto funcional na vida sócio-familiar e laboral de um indivíduo.
  2. A legalidade ou ilegalidade de uma substância não determina, por si só, a sua potencialidade para causar uma patologia aditiva. Substâncias legais (como o vinho) podem originar quadros de dependência grave, com um impacto negativo similar ao de uma substância dita ilegal (como a cannabis). Contudo, salvo condições raras (por exemplo, embriaguez patológica), contraindicações específicas (por exemplo, doença hepática ou cardíaca graves) ou factores de risco bem estabelecidos (por exemplo, depressão, solidão, história familiar), o consumo moderado diário de vinho não produzirá, em princípio, consequências sanitárias nefastas. Por sua vez, o consumo regular “moderado” de cannabis (sendo que moderado é uma medida não esclarecida para esta substância), para além dos riscos similares aos do tabaco, pode (ao contrário deste) precipitar ou descompensar quadros psiquiátricos graves.
  3. A catalogação da cannabis de “droga leve” é enganadora e assume particular relevo na saúde mental. Alterações cognitivas (concentração, atenção, memória, processamento de informação), perturbações delirantes, depressão ou psicose são alguns exemplos de quadros clínicos que podem ser desenvolvidos (ou agravados) pelo consumo regular (ou episódico) de cannabis.
  4. O argumento de que a legalização da cannabis contribui para a diminuição do tráfico e da prevalência das patologias aditivas, é, no mínimo, dúbio e nebuloso.
  5. A cannabis tem efeitos terapêuticos? Sim, tem. Aliás, há, por exemplo, diversos opióides (grupo a que pertence a droga “dura” heroína) que são utilizados na prática clínica para o controlo da dor ou da tosse. A pertinente diferença é que os produtos utilizados nestas situações são medicamentos que foram devidamente desenvolvidos e testados e para os quais foram determinadas com rigor as dosagens, as vias de administração e as respectivas indicações terapêuticas. O consumo recreativo de uma substância com potencial aditivo, como a cannabis, sem a informação esclarecida a que o consumidor tem direito acerca dos riscos para a saúde física e mental e sem a determinação científica de uma eventual dosagem e/ou posologia seguras, não é o mesmo do que consumir, de forma clinicamente justificada e sob prescrição médica, derivados opióides aprovados pelas entidades reguladoras competentes.
  6. Doentes com problemas de dependência, sobretudo os que estão abstinentes há muitos anos, costumam confessar-me que se no período mais difícil da vida deles, em que os abusos e os comportamentos de risco eram intensos, tivessem tido livre acesso às drogas, muito provavelmente as consequências (clínicas, sócio-familiares, laborais, forenses e económicas) teriam sido bem mais gravosas.
  7. Embora a “porta de entrada” para o mundo da adição seja multifactorial, não é de todo de menosprezar o papel que a cannabis assume nesse domínio particular.
  8. A associação da cannabis à criatividade artística não está comprovada e contribui para uma mítica romantização da substância que alicia ao seu consumo.
  9. A noção de que o Estado não deve em nenhuma circunstância cercear a liberdade de escolha do indivíduo é extremamente redutora como justificação para a legalização das ditas drogas “leves”. O Estado, por exemplo, determina legalmente a obrigatoriedade de usar capacete e cinto de segurança (mesmo quando o condutor circula sozinho no veículo) porque procura, para além de prevenir a mortalidade rodoviária, precaver sequelas clínicas com impacto sócio-familiar, laboral, económico e forense.

A liberdade individual é, inquestionavelmente, um direito consagrado. Contudo, deve ser exercida numa justa e adequada proporcionalidade e equilíbrio com o comunitarismo.

Não questiono a legitimidade de, num regime democrático, um parlamento decidir legalizar a cannabis, assim como não me choca que assim venha a suceder no futuro. Porém, não posso aceitar que se crie a percepção de que a substância é inócua para a saúde em geral e se diminua, ou ignore de forma grosseira, o seu impacto nocivo na Saúde Mental e as consequentes repercussões funcionais dramáticas para o indivíduo, a família e a sociedade.

Em última instância, cabe ao Estado o dever mínimo de informar convenientemente a população acerca dos riscos clínicos, sócio-familiares, forenses e laborais da cannabis para que, se legalizada, o indivíduo possa decidir de forma esclarecida se a consumirá.

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