Caríssimo Luca! Escrevo-te em resposta à carta que o Público inseriu na sua edição do passado dia 17, em que Ademar Costa afirma: “O meu cão beagle está registado com o meu apelido: Luca Costa”!

Eu sabia que abundam os cães com nome próprio de gente e também não falta gente com nomes de cães e, até, piores. Mas, para mim, foi uma novidade saber que há cães que, para além de um nome próprio, têm um apelido!

Apesar de a carta ter sido escrita na Póvoa de Varzim, onde nasceu Eça de Queiroz, é avessa ao génio do escritor. Com efeito, o teu nome próprio, em bom português, é Lucas, e não Luca, que é italiano. Portanto, quando o Ademar te chamar Luca, em vez de Lucas, trata-o tu por Cota, em vez de Costa, e ficam quites.

Como sabes, o Ademar insurgiu-se contra “o bispo do Porto, Manuel Linda”, que, segundo ele, “fez uma afirmação muito feia ao considerar o apego a animais típico das sociedades decadentes”, o que o levou a concluir que “algo vai muito mal na sociedade portuguesa”. Tem toda a razão, pois ele nem sequer trata o Senhor Bispo pelo seu nome, que é, salvo melhor opinião, D. Manuel Linda, a não ser que o Ademar lhe tenha tirado o Dom para o dar a ti. Se foi o caso, então és o D. Luca Costa, e não, apenas, Luca Costa, como se fosses um reles bispo da Igreja Católica portuguesa, e não um distintíssimo beagle.

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Quando puderes, explica ao Ademar que o Senhor D. Manuel Linda não disse o que ele escreveu que tinha dito. As palavras do Bispo do Porto foram: “Todos os contactos e relacionamentos criam especiais laços de amizade. Mas os laços de sangue entre pais e filhos possuem uma tal força que nada os desfaz. Nunca os substituamos pelo apego a um qualquer animal de estimação, típico das sociedades decadentes”. Ao contrário do que alguns, com má-fé, fizeram crer, o Bispo do Porto não disse que o apego a um animal de estimação era típico das sociedades decadentes, mas que, substituir os laços entre pais e filhos, pelo apego a um animal de estimação, é que é típico das sociedades decadentes. Confundir as duas expressões é como dizer que ‘as obras-primas do mestre’ é o mesmo que ‘as primas do mestre-de-obras’!

Depois da incrível distorção das palavras de D. Manuel Linda, temo que tu, Luca, consideres que o vosso apego aos humanos que não sabem ler, nem perceber, uma frase tão óbvia e sensata é um preocupante sinal da decadência da condição canina!!

De facto, se os humanos têm tanta dificuldade em compreender o que o Senhor Bispo do Porto disse, devias só ter amigos da tua espécie – não digo raça, para que o SOS Racismo não me acuse de racista! – sejam eles beagles, pastores alemães, bulldogs, serras da Estrela, setters, dálmatas ou rafeiros. Com efeito, a referida carta não só envergonha a espécie humana, como também a canina, por razão da tão estreita relação entre ambas, devido à nossa recíproca dependência e, certamente, decadência.

Imagino quanto os outros cães se devem rir de ti, por esse teu decadente apego aos humanos, quando sais à rua, para os passeios exigidos pelas tuas necessidades fisiológicas, cujos vestígios espero que o Ademar tenha o cuidado de retirar da via pública. Sobretudo os cães da rua, que não têm coleira nem dono, devem ficar muito envergonhados pela tua humilhante dependência! Se os animais domésticos já têm apelidos, porque são indignamente levados pela trela, alguns até com açaime?! Eles é que deviam levar os donos pela trela! Aliás, porque há-de ser o Ademar a dar-te o seu apelido e não tu, Luca, a dares a ele a tua condição de cão beagle?! Só haverá justiça quando houver reciprocidade plena nas relações entre os humanos e os outros animais!

Mesmo supondo que és ciente da tua dignidade, o que se supõe por não teres subscrito a carta do Ademar, talvez não saibas que o teu apelido é muito ilustre. Não só tem armas próprias, privilégio heráldico de que nem todas as famílias se podem orgulhar, como é Costa o nosso primeiro-ministro!

Bem sei que não é honroso, para um bicho, ser homónimo de um humano. De facto, é tal a dignidade dos animais que Jesus Cristo deu alguns animais como modelos aos homens: “Sede pois prudentes como serpentes e simples como pombas” (Mt 10, 16). Não disse que estes animais deviam ser como os homens, mas que os seres humanos devem ser como as serpentes e como as pombas! Mais ainda, foi ele o primeiro a dar o nome de uma besta a um político quando, referindo-se a Herodes, disse: “Ide dizer a essa raposa …” (Lc 13, 32). A moda pegou e, desde então, não faltam políticos a quem é atribuída a bestial condição de raposa, camelo, asno, camaleão, papagaio, hiena, etc.

Por seres Costa, meu caro Luca, tens muitas hipóteses de pertencer ao Governo, que é uma espécie de família: como são todos primos, irmãos, cunhados, etc., é difícil distinguir uma reunião do conselho de ministros de uma consoada. Portanto, sendo homónimo do nosso primeiro, podes passar por seu parente e vir a ser ministro. Não seria de espantar, porque Calígula nomeou o seu cavalo, Incitatus, cônsul, e não foi dos piores que o império romano teve. Ora, se um cavalo pôde ser cônsul em Roma, nada impede que um cão seja ministro em Portugal. Poderias até ter a pasta da ideologia de género e instalar as casas-de-banho unissexo nas escolas porque, também nisto, os cães estão à frente dos humanos: há muito que cães e cadelas ‘regam’ as mesmas árvores e plantas, em regime de total promiscuidade e sem qualquer discriminação sexista!

Os animais terem um nome próprio humano – em vez dos tradicionais Rim-Tim-Tim, Milu, Fiel, Piloto, Mimosa, Lassie, etc. – foi um grande avanço. Mas terem também apelidos – talvez até vários! – é um passo gigantesco para o integral reconhecimento dos direitos dos animais. Já só falta uma marcha anual do orgulho canino!

Graças à dignidade social do apelido, sobretudo se for ilustre, já ninguém se atreverá a dar uma sapatada a cão que lhe rosne, ou ameace morder as canelas. Com efeito, pode ser um aristocrático Vasconcelos, ou um Meneses, um Albuquerque, um Noronha, ou mesmo um Mello com dois ll!?! Talvez até tenha o Dom episcopal – agora que está na moda tirá-lo aos bispos – e seja homónimo do chefe do Governo! Portanto, muito respeitinho pelos cães com nome próprio e apelido!

Cumprimentos para o Ademar, com votos de que não deixe de nos brindar com as suas eloquentes epístolas. Para ti, caríssimo Luca, a expressão humana da minha muita consideração, estima e alguma inveja pela tua condição canina, que não passa pela vergonha de certas cartas abertas ao director do Público.