Evitemos perder a cabeça. Um bairro como o da Jamaica, no Seixal, não chega para fazer de Portugal uma França, com os seus “territórios perdidos da república” e as suas vagas de automóveis a arder. E uma história colonial, com escravatura e trabalho forçado, mas também com miscigenação e assimilação, não é suficiente para justificar comparações com os EUA, com a sua tradição de segregação, a sua classificação estatística da população por “raças”, e as suas ansiedades acerca da futura composição étnica do país. Não, Portugal não é a França dos “banlieues” nem os EUA de “Jim Crow”. Mas bairros como o da Jamaica ou o passado ultramarino parece que põem alguns a sonhar com o dia em que possam confundir o Seixal com um subúrbio de Paris, ou contar a história de Portugal como se fosse a história do Alabama de Harper Lee.
Num país pequeno e sempre ansioso por se “modernizar”, muita coisa é fatalmente importada e imitada de fora. Eça de Queirós já fez, em Os Maias, o humor que havia a fazer sobre o tema. Hoje, um dos fascínios desse provincianismo copiador parece ser a redução da política ao confronto de tribos. Uns gostariam de tirar o Black Lives Matter do computador para a rua, e outros o “nativismo” à moda da Frente Nacional. De um lado, temos o BE de Catarina Martins, e do outro “grupos” mais ou menos fantasmas, de quem a imprensa fez representante a Mário Machado. Vindos de extremos diferentes, a sua luta é aqui a mesma: desviar as pessoas de uma cultura comum de cidadania e prendê-las na estreiteza dos tribalismos definidos pela cor da pele. O apelo de Catarina Martins à população da Jamaica é claro: fechem-se sobre si próprios, desconfiem de uma sociedade “racista”, e recusem as suas leis e as suas regras, porque são as leis e as regras do “racismo”. O convite dos Mários Machados aos “nativos” também é muito claro: resistam à “invasão” dos estrangeiros, e combatam o Estado que facilita e protege o abastardamento da “raça” nacional. Para os Mários Machados, é a luta principal. Para Catarina Martins, é mais uma das lutas de substituição de quem já só encontra a classe operária nos velhos livros de Lenine e, entretanto, tem de votar os orçamentos aprovados pela Comissão Europeia.
Podemos, como é óbvio, fazer de conta que nada se passa, para além de uma confluência ocasional entre demagogos à procura de causas e jornalistas à procura de títulos. Mas alguma coisa se passa, porque não é simples integrar a população que chegou à Europa através das migrações descontroladas dos últimos anos. Às economias europeias falta o dinamismo para criar os empregos e as oportunidades esperadas, e às culturas, a auto-confiança e a exigência que não deixassem dúvidas sobre as regras que todos têm de respeitar para viver em comum. Não descontemos, por isso, as hipóteses dos extremistas de um lado e do outro. A divisão e a desconfiança são sempre mais fáceis de obter do que a integração e a confiança.
A estagnação económica poupou Portugal a grandes afluxos. Mas nem por isso deixa de ter favelas como a da Jamaica. Há preconceitos? Há, sem dúvida, mas menos derivados de um qualquer ideal de supremacia branca, do que da suspeita que sempre visou os pobres. A “racialização” à americana, em que comungam os extremistas, não é obviamente a solução. Dispenso-me, por muito repetida, de detalhar a lista do que se deve fazer. Há, porém, uma ilusão perigosa: é a de que, para evitar acusações de “securitarismo”, possamos dispensar a presença firme do Estado e dos seus serviços. Onde a polícia não entra, mandam os mais violentos e qualquer integração é impossível.